domingo, 16 de outubro de 2016

Nota Dois

As traduções que até agora foram partilhadas neste blogue resultam de vários anos de experimentação e aprendizagem.

São poucas, já que não tenho disponibilidade de tempo para produzir outro volume de trabalho. Mas esta nota pretende chamar a atenção para o facto de o meu método de tradução ter evoluído imenso ao longo de todos esses anos. Evoluído até eu ter encontrado a minha própria maneira (e até a minha própria ideologia) de tradução.

Assim, entre as versões de Swinburne e as de Robert Frost (as últimas que fiz) quase não há semelhanças em termos dos processos de trabalho que as produziram. Em todo o caso, se partilho aqui traduções em cujo método já não me revejo, é porque as continuo a considerar válidas no seu propósito e no seu resultado.

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Um dos que a noite conheceu

Já fui um dos que a noite conheceu.
Cheguei a andar na rua a apanhar chuva.
E a ir onde a cidade passa a breu.

Só tive olhos p’ra a viela mais soturna
E ao passar pelo guarda no seu giro
Baixei-os p’ra manter a causa muda.

Cessei o som dos pés, fiquei tolhido
Por um clamor errático e distante
Que veio de outra rua ter comigo

P’ra nada me dizer de confortante;
E um luminar relógio sobre o céu
Proclamou nessa altura exorbitante

Que a hora nem ‘stava certa nem com erro.
Já fui um dos que a noite conheceu.


Robert Frost

Canis Major

Esse Acima de cão
Grande besta celeste
Com uma estrela num olho
Dá um salto no leste.

Ele dança de pé
No caminho do ocidente
E nem uma vez cai
Sobre as patas desistente.

Já eu sou abaixo de cão
Mas esta noite vou ladrar
Com o grande lá de Cima
Que corre o escuro a brincar.


Robert Frost

Parando junto ao bosque em noite de neve

Quem julgo deste bosque ser senhor
Tem casa no povoado – é de supor
Que não verá que, neste paradeiro,
Contemplo a neve encher tudo ao redor.

Aviso, o meu cavalo é bem matreiro:
Parámos entre o bosque e o lago gélido,
Sem casa à vista, aliás, longe de tudo,
Na noite mais escura do ano inteiro…

Tem guizos nos arreios, não é mudo,
E quer saber se há aqui caso bicudo.
Só outro impulso então se faz ouvir:
O vento suave e a neve de veludo.

Cerrado, o bosque tenta persuadir,
Mas eu tenho promessas a cumprir,
E muito para andar até dormir,
E muito para andar até dormir.


Robert Frost

Desígnio

Vi uma aranha com covinhas nas bochechas, branca,
Erguendo uma traça numa flor branca de erva-férrea
Como se erguesse uma toalha de cetim, branca e tesa –
Personagens reunidas num cenário de matança,
Combinadas (pois há que começar bem a manhã)
Num caldo que as bruxas por certo trariam p’ra a mesa –
Era uma aranha quase neve, e uma espuminha de erva,
E asas tão mortas como um papagaio de criança.

Por que razão essa flor ficou assim toda branca,
Ela, que é sempre azul, sempre inocente em seu decoro?
O que guiou a aranha e a traça em clara semelhança
P’la noite até à altura misteriosa de uma planta?
Nenhuma cor resiste a um desígnio tão tenebroso?
Se é que um desígnio rege algo tão pouco grandioso.


Robert Frost

terça-feira, 20 de setembro de 2016

O caminho não tomado

Numa bifurcação de um bosque amarelo,
Lamentei não poder ser um só viajante
Viajando pelos dois destinos, e quieto
Perante um dos caminhos, fiquei a vê-lo
Até el’ se sumir no mato distante;

Decidi tomar o outro, tão belo e justo,
E tendo a seu favor talvez mais razões,
Já que erva assim tão densa pedia uso;
Só que o trânsito que houve nos dois percursos
Desgastou-os em quase iguais proporções,

E nessa manhã quase iguais el’s jaziam
Em folhas que nenhum passo enegrecera.
Oh, deixei o primeiro para outro dia!
Mas sei: se toda a via gera outra via,
Voltar aqui é coisa mais do que incerta.

Hei de estar a contar isto, suspirando,
Algur’s daqui a um ror infindo de tempo:
Numa bifurcação de um bosque – ousado,
Eu tomei o caminho menos viajado,
E isso fez com que tudo fosse diferente.


Robert Frost

Bétulas

Quando o vaivém das bétulas se afirma
Na rigidez escura que há no bosque,
Gosto de achar que é arte de um miúdo.
Se a tempestade as verga, sem retorno
O faz. Muitas vezes as terás visto
Carregadas de gelo após a chuva
Na manhã de inverno. Dão estalidos
Quando levanta a aragem, e o seu esmalte
É varado por cortes e por cores.
O sol então descasca em avalanche
Esse cristal sobre o manto de neve –
Tanto é o caco p’ra varrer que eu pergunto
Se a cúpula do céu terá caído…
Vergadas até ao feto murcho, elas
Parecem não quebrar, mas quando em baixo
Por muito tempo, não mais se endireitam:
Podes ver, anos depois, os seus troncos
Arqueados, quais raparigas de gatas
Secando ao sol os cabelos lançados
Para a frente, por cima das cabeças.
Mas antes da interrupção da Verdade
Com o prosaísmo da sua borrasca
Eu defendia a tese desse miúdo
Brincando enquanto conduzia as vacas –
Um miúdo alheio ao beisebol da vila,
Entretendo-se sozinho, de inverno
Ou de verão, com tudo o que encontrasse.
Domou, uma a uma, todas as árvores
Do seu pai, cavalgando-as tantas vezes
Que todas lhe entregaram a firmeza,
E nenhuma ficou por amaciar,
Nenhuma por vencer. Foi aprendendo
A não as lançar demasiado cedo
Pr’a evitar que fossem arrebatadas
Até ao chão. Mantinha um equilíbrio
Permanente até ao cimo, trepando
Com os mesmos cuidados com que tu
Desafias a borda de uma chávena.
Só então, sibilando, se lançava
Com o impulso dos pés até ao chão.
Também eu fiz das bétulas baloiço.
E a tal muito gostava de voltar.
Quando estou cheio de cogitações,
E a vida é como um bosque sem caminhos
Onde o rosto se aflige co’a coceira
Das teias de aranha, e um olho chora
Porque foi atingido por um galho.
Pudesse eu sair da terra um instante
E a seguir regressar em recomeço…
Não se arme o destino em sonso e me dê
Só metade do que peço, levando-me
Para não mais voltar. Pois só na terra
Há ‘spaço para o sucesso do amor.
Eu gostava de ir só até ao céu,
Subindo os ramos negros da brancura
De neve de uma bétula e descendo
Quanto, já no limite, ela cedesse.
Ir e vir no baloiço de uma bétula:
Há maneiras pior’s de se viver.


Robert Frost

Após a apanha da maçã

Ainda as hastes da longa escada rompem a árvore
Na direção do Céu,
Permanece um barril que não se encheu
A seu lado, e talvez em qualquer ramo
Penda por colher alguma maçã.
Mas chega de colheita para já.
Há na noite a essência da hibernação,
Cheira a fruta: começo a adormecer.
Tenho agarrada aos olhos a impressão
Sentida ao ver a relva encanecida
Através da película de gelo
Que retirei da água de uma tina.
Ao derreter, deixei-a estilhaçar-se.
Antes, porém, de ela cair,
‘stava eu já a caminho de dormir,
Podendo pressentir
A forma que o meu sonho ia tomar.
Maçãs vão e vêm, descomunais,
Mostram com toda a nitidez
Os seus menor’s recantos e sinais.
Sinto ainda o meu pé a lastimar
A pressão que um degrau nele exerceu.
E sinto que a escada está mal assente.
E continuo a ouvir vindo da adega
O inconfundível escarcéu:
A maçã chega até se dizer chega.
Porque já tive a minha dose
De apanha de maçãs. Já me cansei
Da grande colheita que ambicionei.
Todo um pomar na sua apoteose
Em mãos lutando p’ra nada perder:
Pois qualquer
Fruto que à terra caia,
Mesmo que a colisão não o machuque,
Ficará, sem valor, ao abandono
Na pilha à sidra reservada.
Percebe-se que tal perturbe
O sono que há de vir, seja el’ qual for.
Se ainda estivesse aqui,
A marmota diria o seu teor,
Se é vasto sono como descrevi,
Se mais humano sono.


Robert Frost

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

O comboio

Gosto de o ver papar as léguas,
E devorar os vales,
Parando p’ra comer só nas cisternas;
E andar, depois, tão colossal,

Em torno de uma pilha de montanhas,
E sondar, com toda a sua soberba,
As choças que ladeiam as estradas;
E depois desbastar uma pedreira

Para o seu corpo caber nela,
Ainda que rasteje versejando
A mais ruidosa e horrenda queixa;
E a si mesmo seguir p’lo monte abaixo

E relinchar como Boanerges;
E enfim, pontual como uma estrela,
Parar – dócil e todo-poderoso –
À porta da cocheira.


Emily Dickinson

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

O mercado dos duendes

De manhã e à noitinha
As donzelas ouviam pregões de duendes:
“Venham comprar os frutos do nosso pomar,
Venham comprar, comprar:
Marmelos e maçãs,
Laranjas e limões,
Cerejas bem cheiinhas que ninguém ‘inda bicou,
Melões e framboesas,
Bochechas de veludo a que nós chamamos pêssegos,
Uvas-dos-montes livres desde o berço,
Amoras tão vermelhas
E amoras que são pretas ou silvestres,
Alperces, maçãs bravas,
Morangos, ananases; –
Todos amadurados em conjunto
Com tempo de verão, –
Alvoreceres passam,
Bonitas tardes vão;
Venham comprar, comprar:
Uvas acabadinhas de apanhar,
Romãs grandes e boas,
Abrunhos acres, tâmaras,
Arandos, peras raras,
E até rainhas-cláudias,
P’ra quem quiser provar:
Groselhas variegadas,
E bérberis em brasa,
Figos que a boca aguarda,
Limas vindas do Sul,
Dulçor p’ra a língua e para o olhar saúde;
Venham comprar, comprar.”

E assim, tarde após tarde,
Entre os juncos das margens do regato,
Lizzie inclinava-se p’ra ouvir,
Laura encobria o seu rubor:
Acocoradas lado a lado,
Refrescadas pelo tempo,
De braços enlaçados e lábios prevenidos,
Com coceira nas faces e nas pontas dos deditos.
“Não te afastes,” disse Laura,
Erguendo a testa dourada:
“Não devemos contemplar estes duendes,
Não devemos comprar os seus artigos:
Ninguém sabe que solo satisfez
Toda a avidez das suas raízes.”
“Venham comprar,” gritam os duendes
P’lo vale abaixo a manquejar.
“Oh” gritou Lizzie, “Laura, Laura,
Não espreites esses homens.”
Lizzie cobriu então os olhos,
Fechou-os bem não fossem el’s olhar;
Mas Laura alçou a testa bem lustrosa,
E murmurou como rio sem parar:
“Admira Lizzie, admira,
P’lo vale abaixo arrastam-se homenzinhos.
Um del’s carrega um cesto,
Um outro arrasta um prato,
Um puxa uma travessa
Que val’ todo o peso em ouro.
Quão bela deve ser a vinha
Que gera uvas tão gostosas;
Quanto calor terá a brisa
Que sopra em tais pomares.”
“Não,” disse Lizzie: “Não, não, não;
Seus dons não devem encantar-nos
Pois são ofertas com peçonha.”
Meteu seus dedos nos ouvidos,
Fechou os olhos e fugiu:
Laura, curiosa, quis ficar
Para admirar cada tratante.
Um tinha cara de gato,
Um sacudia uma cauda,
Um caminhava a passo de rato,
Um arrastava-se à caracol,
Outro rondava, obtuso e peludo,
Como se fosse um marsupial,
Outro ainda caía à sorte
À maneira do ratel.
Ela julgou ouvir vozes de pombos
Vibrando num arrulho de conjunto:
El’s par’ciam gentis, cheios de amor,
Sob um clima de júbilo profundo.

Seu pescoço fulgente esticou Laura
Como um cisne embutido em plenos juncos,
Como um lírio que vive no riacho,
Como um ramo de álamo ao luar,
Ou a largada daquel’ navio
Que já ninguém pode amarrar.

Pelo val’ musgoso acima
Regressavam os duendes em conjunto,
Repetindo os pregões bem estridentes,
“Venham comprar, comprar”.
Tendo chegado ao pé de Laura
Ficaram quietos sobre o musgo,
Olhar’s marotos repartidos
Entre a estroinice dos irmãos;
Sinais secretos compartidos
Entre a malícia dos irmãos.
Um del’s pôs o cesto no solo,
Um outro ergueu o seu prato;
Outro teceu uma coroa
Com folhas, cirros e umas nozes
Que não se encontram em nenhum lugar;
Com ‘sforço um levantou o peso fulvo
De uma travessa com fruta para lhe dar:
“Venham comprar, comprar,” era ainda o seu pregão.
De olhos arregalados, Laura não buliu,
Frustrada pela falta de dinheiro:
Um del’s, com cauda louca, incitou-a a provar
Num tom de voz tão suave como o mel,
O da cara de gato ronronou,
O do passo de rato apresentou as boas vindas,
O do passo de caracol falou;
Outro, de alegre voz de papagaio,
Em vez de “Levo-te uma carta”
Exclamou “Compra-me esta fruta”, –
Qual pássaro, houve um outro que assobiou.

Mas à pressa falou a ávida Laura:
“Boa gente, não tenho como vos pagar;
Se eu me servir é o mesmo que roubar:
Não tenho cobre em minha bolsa,
Também não tenho prata,
Todo o meu ouro está no tojo
Que treme em tempo ventoso
Sobre a urze ferruginosa.”
“Na tua cabeça tens muito ouro,”
Foi a resposta deles todos:
“Podes pagar co’um caracol dourado.”
E um caracol precioso ela cortou,
E pérola valiosa ela chorou,
Depois chupou o frutedo rubro ou claro:
Mais doce que o mel do rochedo,
Mais forte que o vinho exaltante,
Mais claro do que água corria aquel’ sumo;
Nunca antes provara ela nada par’cido,
Por mais que o bebesse o fastio era nulo.
Chupou e chupou e chupou mais ainda
Os frutos que o ignoto pomar produzia;
Chupou até a boca ficar dolorida;
As cascas sem nada depois deitou fora,
No entanto apanhou um caroço co’ amêndoa,
E já não sabia se dia era ou noite
Ao voltar p’ra casa sozinha.

Lizzie foi ter com a irmã ao portão,
Sábia com mil reprimendas
“Querida, não deves tardar assim tanto,
O anoitecer é mau para as donzelas;
Peço que não te demores no vale
Nos lugares onde param os duendes.
Não te lembras da Jeanie,
Como ela os encontrou à luz da lua,
Tomou suas prendas muitas e de classe,
Comeu sua fruta e usou suas flor’s colhidas
Naquel’s boudoirs de sombras dos jardins
Onde sempre o verão amadurece?
Mas desde então à luz que vem do sol
Ela foi definhando e definhando;
Buscou-os dia e noite, tudo em vão,
Mas foi encanecendo e estiolando;
Caiu depois com a primeira neve,
E até hoje nenhuma erva cresce
Onde ela jaz p’ra sempre:
Há um ano atrás plantei lá bem-me-queres,
Os quais nunca florescem.
Não deves regressar tão tardiamente.”
“Caluda!,” disse Laura:
“Caluda!, minha irmã:
Eu comi e comi à discrição,
Contudo ainda sinto água na boca;
Na noite de amanhã
Comprarei mais;” e deu-lhe um beijo:
“Não te queixes;
Amanhã vou trazer-te ameixas frescas
Que ainda vêm presas aos seus ramos,
E cerejas que valem toda a pena;
Nem consegues imaginar os figos
Que os meus dentes puderam penetrar,
O monte de melões frios
Sobre uma travessa de ouro
Grande demais p’ra eu segurar,
O aveludado da pele dos pêssegos,
A transparência das uvas sem grainha:
Bem odorosa será a campina
Onde eles crescem, e pura a torrente
Que eles bebem com lírios pela beira,
E doce como açúcar a sua seiva.”

Dourada testa junto a testa igual,
Como em seu ninho duas pombas mantendo
As asas enlaçadas,
Sob um dossel estão deitadas:
Como duas flores num só caule,
Ou dois cristais recém-nevados,
Como dois cetros de marfim e ponta de ouro
Para reis que são medonhos.
As estrelas e a lua contemplavam-nas,
Com seu cantar os ventos embalavam-nas,
Abstinham-se de voar mochos pesados,
Nenhum vaivém se ouvia de morcegos
À volta da sua paz:
Face com face e os peitos bem juntinhos,
Abraçam-se uma à outra no seu ninho.

De manhã cedo
Quando o primeiro galo deu o aviso,
Puras como as abelhas, doces, lestas,
As duas levantaram-se:
Foram buscar o mel, ordenharam as vacas,
Arejaram, puseram em ordem a casa,
Com o trigo mais branco cozinharam bolos
Destinados a bocas requintadas,
Depois bateram natas, fizeram manteiga,
Deram comida às aves e por fim sentaram-se
Costurando e falando com justo recato:
Lizzie de alma aberta,
Laura absorta em sonhos,
Uma contente, a outra em parte doente;
Uma chilreando o bem do dia claro,
A outra pela noite suspirando.

Chegou por fim o entardecer moroso:
Munidas com seus jarros deslocaram-se
Até junto do arroio bem juncoso;
A Lizzie estava plácida no olhar,
Mas Laura era uma chama a saltitar.
Da profundez tiraram gorgolejos de água;
Colheu Lizzie os mais ricos lírios de ouro e roxo,
E a olhar p’ra casa disse: “O pôr-do-sol já cora
Lá muito ao longe aqueles penhascos grandiosos;
Vem, Laura, não há moça que fique p’ra trás,
Nenhum teimoso esquilo ‘inda se mexe,
Animais e aves dormem como pedras.”
Mas entre os juncos Laura ‘inda tardava,
Dizia: “A margem é muito empinada.

Ainda é cedo, o orvalho não caiu,
O vento não gelou;”
Tentava em vão ‘scutar o usual pregão,
O reiterado jingle todo feito
De iscos de açúcar presos às palavras
“Venham comprar, comprar”.
Por muito que observasse,
Não discernia um duende só que fosse,
Mancando, correndo, caindo em confusão;
Quanto mais a multidão
Que por norma rojava pelo vale
De feirantes notáveis p’la malícia,
Traficando ora a solo ora em equipa.

Mas Lizzie insistiu, “Oh! Laura, vem;
Ouço o pregão, porém não ouso olhar:
Não deves mais tardar junto a este riacho:
Vem p’ra casa comigo.
Já há ‘strelas no céu, flete a lua o seu arco,
Cintila o pirilampo,
Vamos antes de a noite se toldar:
Pois, apesar de estarmos no verão,
Os nimbos podem sempre cumular-se,
Podem fechar as luzes e encharcar-nos;
Se nos perdêssemos, o que faríamos?”

Laura foi trespassada pelo frio
Ao notar que o pregão só p’la irmã era ouvido,
Aquel’ pregão dos duendes,
“Venham comprar, comprar os nossos frutos.”
Não mais pod’rá comprar fruta tão fina?
Não mais encontrará o pasto sucoso,
Como se fosse surda e também cega?
Desde a raiz murchou sua árvore da vida;
Calou-se ante a severa dor do coração;
Mas, às apalpadelas no escuro cerrado,
Arrastou-se p’ra casa, o seu jarro pingando;
Rastejou até à cama, e assim se deitou
Silenciosa até Lizzie adormecer;
Depois sentou-se em ânsia apaixonada,
Rangeu frustrada os dentes, e chorou
Como se o coração fosse romper.

Dia após dia, noite após noite,
Laura montou a sua guarda em vão
Num silêncio soturno de extrema aflição.
Jamais voltou a ouvir aquel’ clamar:
“Venham comprar, comprar;” –
Jamais voltou a espiar os homens duendes
Seus frutos apregoando pelo vale:
Mas ao se encher de brilho a meia-noite
Ficou o seu cabelo fino e pardo;
Ela mirrava, lua cheia e clara
Que súbita declina e o seu fogo
Consome até à ruína.

Certo dia lembrando-se do seu caroço
Plantou-o junto a um muro virado a sul;
Orvalhou-o com choro, sonhou uma raiz,
‘sperou o crescimento de um rebento,
Mas nenhum apareceu;
Nunca este viu a luz,
Nunca sentiu a seiva correr gota a gota:
Enquanto de olhos fundos e apagada boca
Ela ideava melões, como um viajante vê
No deserto ondas falsas
Com árvores monarcas das suas sombras,
E na brisa de areia arde ‘inda mais sedento.

Deixou, pois, de varrer a casa,
De tratar das galinhas ou das vacas,
De arranjar mel, de cozinhar bolos de trigo,
De trazer água da ribeira:
Mas sentou-se delida num cantinho da lareira
E sem querer comer.

Não suportava a terna Lizzie
Ver o cuidado que ulcerava a sua irmã
Sem o poder partilhar.
De noite ou de manhã
‘Inda ouvia o pregão:
“Venham comprar os frutos do nosso pomar,
Venham comprar, comprar:” –
P’lo vale fora, perto do ribeiro,
Ela ouvia o rastejo dos duendes,
A voz e o reboliço
Que a pobre Laura não podia ouvir;
Ansiava comprar fruta p’ra a alentar,
Mas temia pagar caro demais.
Lembrava-se da Jeanie na sua campa,
Que deveria ter sido uma noiva;
Mas que ao gozar prazer’s que as noivas sonham
Adoeceu e morreu
Na primavera da sua vida,
No início da estação mais fria,
Com a primeira geada luzidia,
Com a primeira neve da invernia.

Até que Laura, decaindo,
Par’cia estar às portas já da Morte:
Então Lizzie perdeu o calculismo
(O que era, ao fim a ao cabo, melhor ou pior?);
E metendo na bolsa uma moeda de prata,
Beijou Laura e cruzou, sob luz crepuscular,
O maciço tojal, até chegar ao riacho:
Aí pela primeira vez na vida
Começou a ouvir, começou a olhar.

Todos os duendes se riram
Quando a toparam a espreitar:
Vieram ter com ela a manquejar,
A correr, a voar, a saltar, a arquejar,
A bater palmas, a rir por entre dentes,
A fazer có có ró e glu glu glu,
Peritos na careta e no esgar,
Cheios de boas maneiras,
Mas fazendo caras feias
E momices circunspectas,
Como ratos ou ratéis,
Como gatinhos, – marsupiais,
Em passo de apressados caracóis,
Assobiando à papagaio,
Sem rei nem roque, a trouxe-mouxe,
Tagarelando como pegas,
Esvoaçando como pombos,
Ou deslizando como peixes, –
E abraçaram-na e beijaram-na,
E apertaram-na em carícias:
Estenderam-lhe os seus pratos,
Os seus cestos e travessas:
“Vem ver as nossas maçãs
(Temos golden e reinetas),
Abocanha estas cerejas
E mordisca os nossos pêssegos,
Temos limas, temos tâmaras,
Tantas uvas que é só pedir,
Temos peras que avermelharam
Por passarem o tempo ao sol,
Temos ameixas nos seus galhos;
Anda lá: arranca, chupa,
Os figos e as romãs.” –

“Boa gente”, disse Lizzie,
Sempre com Jeanie na mente:
“Dêem-me muito, muitíssimo:” –
E estendeu o seu avental,
E pagou a dinheiro o destino.
“Ai, não senhora, senta-te connosco,
Dá-nos a honra de comer’s connosco,”
Disseram el’s de tacha arreganhada:
“’stá mesmo a começar esta festança.
A noite ‘inda agora é uma criança,
Quentinha e aljofarada,
Sem sono e estrelada:
É que frutos como estes não podem
Ser levados por mão de Homem:
Metade do seu veludo voaria,
Metade do seu rocio secaria,
Metade mesmo do seu sabor
Passaria despercebido.
Senta-te e festeja connosco,
Convive, ó bem-vinda, connosco,
Desfruta e descansa connosco.” –
“Obrigada,” disse Lizzie: “Mas há uma pessoa
Sozinha lá em casa esperando por mim.
Assim sendo, acabou-se o parlamento:
Se não me vão vender fruto nenhum
Ainda que eles sejam um milhão,
Passem p’ra cá a prata que vos dei
Como gratificação.” –
Então, el’s desataram a coçar as tolas
(Acabara-se a cauda mansa e o ronronar),
Puseram-se a discutir,
A grunhir e a rosnar.
Um chamou-lhe emproada,
Intratável, grosseira;
Falavam de voz exaltada,
Olhavam de maneira malfazeja.
Sacudindo com fúria as caudas,
Eles pisaram-na e empurraram-na
Co’ encontrões e cotoveladas,
Arranharam-na com as unhas,
Ladrando, miando, pateando,
Depois rasgaram-lhe o vestido
E macularam-lhe o collant,
Arrancaram-lhe algum cabelo,
Pisaram os seus pezinhos,
Prenderam as suas mãos
E espremeram-lhe na boca a fruta
Para a obrigar a engolir.

A branca e fulva Lizzie manteve-se impávida,
Como um lírio cercado p’la enxurrada, –
Como a venação garça de uma rocha
Com ‘strondo fustigada por marés, –
Como um farol deixado à sua sorte
Num mar imemorial e barulhento,
Arremessando o brilho da sua chama, –
Como a árvore coroada de laranjas
E branca de botões doces com mel
Sitiada em dor p’la vespa e pela abelha, –
Como a cidade virgem, principesca,
Com profusão dourada de pináculos,
Sob o vizinho cerco de uma esquadra
Ansiosa por arriar a sua bandeira.

Mas pode-se levar o burro à fonte,
Não se pode é obrigá-lo a beber.
Por isso, embora os duendes lhe batessem,
A combatessem, a aliciassem,
Fizessem bullying, suplicassem,
A arranhassem e com beliscões pintassem
Até ela enegrecer,
A pontapeassem, a empurrassem,
A achincalhassem e espancassem,
Lizzie não soltou uma só palavra;
Nem deixava um do outro os lábios se afastarem,
Não fossem aquel’s duendes mercadores
Enfiar-lhe um pedacinho boca adentro:
Mas dentro havia apenas o seu riso
Ao sentir o gotejar daquel’ xarope
Que cobria a sua face,
E se alojava nas covinhas do seu queixo,
E que riscava o seu pescoço que tremia
Tal e qual uma coalhada.
Por fim as criaturas malfazejas,
Batidas por tão grande relutância,
Fizeram-lhe o reembolso, e chutaram os seus pomos
Por todos os atalhos nos quais se dissiparam,
Sem deixarem raízes, caroços ou renovos;
Alguns serpentearam para dentro do chão,
Alguns, com ondinhas circulares,
Mergulharam no arroio,
Alguns deslizaram para o vento
Sem fazerem um som,
Alguns desapar’ceram na distância.

Ardendo em ânsia,
Lizzie foi-se embora;
Não sabia se era noite ou dia a hora;
Trepou a margem, percorreu o tojo,
Atravessou bosquetes e gargantas,
E ouvia a sua moeda chocalhar
Quando saltava no seu bolso, –
Nada menos do que música.
Fartou-se de correr
Como se receasse que algum duende
Corresse atrás de si com seus remoques
Ou outra coisa pior:
Mas não havia duende acossador,
Nem ‘stava ela acirrada pelo medo;
Era o bom coração que a compelia,
Com rapidez de vento,
Na direção de casa.
Seu fôlego era pouco para a pressa
E p’ra o riso interior.

Pelo jardim acima, gritou ”Laura,
Sentiste a minha falta?
Vem beijar-me.
Não te importes co’as minhas pisaduras,
Beija-me, abraça-me, suga estes meus sumos
Espremidos dos frutos dos duendes para ti,
São polpa e são orvalho de duende.
Come-me, bebe-me, ama-me;
E põe-me bem nos píncaros, ó Laura:
Por tua causa eu afrontei o vale
E tive de lidar com o seu mal.”

Laura sobressaltou-se na cadeira,
Agitou os seus braços pelo ar,
Agarrou a cabeleira:
“Lizzie, Lizzie, tu provaste
Por minha causa o fruto proibido?
Também a tua luz será ‘scondida,
Também tua juventude dissipada,
Desgraçada em minha desgraça,
Arruinada em minha ruína,
Ulcerada, sequiosa, pelos duendes subjugada?” –
Agarrou-se à sua irmã,
Beijou-a sem parar:
Caindo como chuva
Após uma aflitiva seca,
De novo refrescaram suas lágrimas
Os olhos evidentes de magreza;
Tremendo de pavor febril, de dor,
Beijou-a sem parar com boca ávida.

Os lábios começaram a queimar,
Para o seu paladar aquel’ sumo era absinto,
Ela odiou o festim:
Possuída em contorções pôs-se a saltar e a cantar,
Rasgou a sua roupa,
Torceu as mãos em lamentosa urgência,
Pôs-se a bater no peito.
Seus caracóis tremiam como a tocha
Que leva um corredor em disparada,
Ou como a crina de um cavalo em fuga,
Como a águia quando avança contra a luz
A direito na direção do sol,
Como uma coisa presa libertada,
Ou como uma bandeira esvoaçando
Quando correm os exércitos.

Um fogo rápido alastrou ao coração,
Achou aí um outro fogo a bruxulear
E subjugou a sua diminuta chama;
Amargura sem nome ela comeu até fartar:
Ah! sua louca, escolher um tal quinhão
De aperto de alma!
A consciência falhou na mortal liça:
Qual torre de vigia estilhaçada
Por um tremor de terra na cidade,
Qual mastro por relâmpago atingido,
Qual árvore arrancada p’ra raiz
Ao vento rodopiando,
Qual tromba-d’água alçando a sua espuma
Lançada de cabeça sobre o oceano,
Ela caiu por fim;
Tão livre de prazer como de angústia,
É morte ou vida?

Vida oriunda da morte.
Vigiou-a Lizzie ao longo dessa noite,
Contou-lhe o enfraquecer da pulsação,
Sentiu-lhe o custo da respiração,
Levou água aos seus lábios, refrescou a sua face
Com lágrimas e leques que eram folhas:
Mas quando nos beirais aves cantaram,
E os matinais ceifeiros se arrastaram
Para os lugar’s dourados por paveias,
E a relva com orvalho se vergou
P’ra deixar passar ventos apressados,
E botões novos com o novo dia
Abriram lírios que eram cálices no arroio,
Laura acordou como no fim de um sonho,
E riu-se, inocente como dantes,
Abraçou Lizzie sem querer parar;
Cinzento não havia nos seus caracóis brilhantes,
Seu hálito era fresco como Maio,
E a luz fazia danças no olhar.

Passados muitos dias, meses, anos,
As duas já casadas,
Já tendo descendência;
O medo à espreita em cada alma materna,
Suas vidas em união com ternas vidas;
Laura chamava os filhos pequeninos
P’ra lhes falar da sua juventude,
Dias de plenitude há muito idos,
Tempo que não regressa:
Falava sobre o assombrado vale,
Sobre o bizarro mal daquel’s feirantes,
Seus frutos como mel p’ra o paladar
Mas veneno para o sangue;
(Frutos que não se encontram em nenhum lugar).
Falava da firmeza da sua irmã
Que em perigo de vida lhe trouxera
O antídoto benéfico e escaldante:
Depois juntava as mãos às mãos pequenas
Num convite à unidade,
“Não há maior amiga que uma irmã
Em tempo de bonança ou tempestade;
Para nos animar na adversidade,
P’ra nos chamar de novo de novo ao bom caminho,
Para nos levantar se vacilarmos,
P’ra nos dar força enquanto resistimos.”


Christina Rossetti

terça-feira, 13 de setembro de 2016

O palácio de Pã

Setembro, glorioso com ouro, qual rei
    No brilho do triunfo ataviado,
Mais claro que o estio, mais doce que Abril,
Os bosques incuba com asa infinita,
    Presença querida do humano.

As terras pintadas p’lo sol posto e nado
    Sob quente sorriso sorriem;
Mais nobre que um templo por mão levantado,
Coluna a coluna, o santuário se apruma
    Das naves sem fim dos pinhais.

Um culto eloquente, sem prece ou louvor,
    O espírito ocupa com paz,
Preenchida co’o sopro do fúlgido ar,
O odor, os silêncios, as sombras tão claras
    Quais raios crescendo e cedendo.

Pilar’s angulosos que coram longe e alto,
    Com ramo nenhum para um ninho,
Sustêm o tecto sublime e cabal,
À prova do sol, do tufão, colossal,
    Como águas paradas terrível.

Mão de homem jamais a sua altura mediu;
    Razão também não, nem temor;
A trama do bosque em tal sombra é tecida;
O sol como um pássaro cai na armadilha,
    E espalha, nevando, os seus flocos.

Plumagem só de ouro, tais flocos de sol
    Repousam na terra aos montões,
Quais pétalas soltas de rosas sem c’roa
No chão da floresta sombrosa e dourada,
    Corada tão perto e tão longe.

As mãos insondáveis de turvas idades
    Ergueram o templo em retiro
P’ra deuses ignotos, e na ara queimaram
Os anos em pó, e a as areias que o frasco
    Do tempo esqueceu como indício.

Um templo que em milhas calcula os transeptos,
    Que tem como padre a manhã,
Que livra o seu chão do pisar dos ineptos,
Sua música é a música só dos silêncios,
    Bem mais que espectác’lo é a festança.

Sucedem-se as horas litúrgicas, nunca
    O ofício nos vela ou revela,
Nas rampas das terras sem flor’s nem verdura,
O encalço de um fauno, uma pista de ninfa
    Até ao deus Pã em dormência.

O espírito, ateado p’lo pasmo e p’lo culto
    Num êxtase sacro em braveza
Perante os tais rastos que fendem o rumo,
Só ele discerne se em torno dos quais
    Existe uma prova do deus.

Com rubro temor mais profundo que o pânico
    A mente rendida e inconcussa
Escuta a terrena e Titã divindade
Nos passos sentidos em brechas vulcânicas
    De abismos já sem o seu lume.

Por artes mais calmas que as negras magias
    Da morte, da noite e de antanho,
Que o vil frenesi que assombrava o mei’-dia
Onde o Etna se forma dos membros gigantes
    De deuses sem trono e sem vida,

Nossa alma fundida co’ aquel’ cujo sopro
    Sublima o mei’-dia do bosque
Suporta o fulgor da presença que fala
De coisas além, mais serenas que a morte,
    De um Tempo que vence e que cala.


Algernon Charles Swinburne

Um par

Se o amor fosse o que é a rosa,
    E eu tal como a folha fosse,
Medraríamos a par
Com pesar no clima ou júbilo,
Vento ou flor abrindo o solo,
    Prazer verde ou parda dor;
Se o amor fosse o que é a rosa,
    E eu tal como a folha fosse.

Fosse eu tal como as palavras,
    E o amor como a cantiga,
Com som dual e um só deleite
Ligar-se-iam nossos lábios
Em felizes beijos de ave
    Fresca à chuva do mei’-dia;
Fosse eu tal como as palavras,
    E o amor como a cantiga.

Se, meu bem, fosses a vida,
    E eu teu caro a morte a fosse,
Brilho e neve os dois seríamos
Até Março trazer graça
Com narcisos e estorninhos
    E um sem-fim de fértil sopro;
Se, meu bem, fosses a vida,
    E eu teu caro a morte fosse.

Se da mágoa fosses serva,
    E eu um pajem para o gozo,
Toda a vida folgaríamos
Com olhinhos e traições,
Choros da alva e da noitinha,
    Irrisões de moça e moço;
Se da mágoa fosses serva,
    E eu um pajem para o gozo.

Se de Abril tu fosses lady,
    E fosse eu um lorde em Maio,
Jogaríamos com folhas
E com flor’s empataríamos
Até ser sombrio o dia
    E ao contrário a noite clara;
Se de Abril tu fosses lady,
    E fosse eu um lorde em Maio.

Se reinasses no prazer,
    E eu da dor fosse o monarca,
O amor ambos caçaríamos,
Seu voar depenaríamos
P’ra aos seus pés darmos um metro
E à sua boca rédea curta;
Se reinasses no prazer,
    E eu da dor fosse o monarca.


Algernon Charles Swinburne

domingo, 11 de setembro de 2016

"Romeu e Julieta" - Ato II, Cena II

[Surge Julieta em cima]

ROMEU:
Calma!, que luz é aquela na janela?
É o leste e traz Julieta como um sol.
Sobe, formoso sol, e mata a lua,
Que sofre da anemia do ciúme,
Pois tu, sua devota, és mais formosa:
Não ‘stejas ao serviço da ciumenta:
Seu hábito vestal é doença verde
Que só os tolos usam, tira-o já.
Minha senhora, Oh!, meu grande amor!
Oh!, se ela já o soubesse!
Parece que ela fala sem falar…
Respondo a esses olhos que conversam?
Que audaz! Não é a mim que el’s se dirigem:
Ausentes em trabalho, duas estrelas
Pediram aos seus olhos p’ra brilharem
Nas órbitas enquanto elas não voltam.
E se entre si trocassem de lugar?
Sua face humilharia essas estrelas
(Um sol p’ra duas candeias), e os seus olhos
Escoariam no céu tão grande brilho
Que as aves cantariam em delírio.
Como ela apoia o rosto sobre a mão!
Fosse eu nessa mão luva p’ra poder
Tocar seu rosto!

JULIETA:
Ai de mim!

ROMEU:
Falou:                                                   [À parte]
Oh!, fala uma outra vez, anjo brilhante,
Pois nesta noite tu és gloriosa
Como é no céu o alado mensageiro
P’ra os olhos revirados em espanto
Dos mortais que se inclinam para o ver
Quando ele monta nuvens indolentes,
E voga em pleno âmago do ar.

JULIETA:
Por que razão, Romeu, és tu “Romeu”?
Nega o teu pai e o nome que vem dele,
Ou então jura que és o meu amor,
E eu não mais saberei ser Capuleto.

ROMEU:
Ouço ainda ou respondo já a isto?                                   [À parte]

JULIETA:
Por inimigo tenho só teu nome,
Montéquio ou não, tu és sempre tu mesmo.
O que é “Montéquio”? Não é mão nem pé,
Nem braço, rosto, nada que componha
Um corpo humano. Sê um outro nome.
Vale isso o quê? Teria a rosa odor
Tão doce se outro nome fosse o seu.
A cara perfeição que Romeu tem
Também se manteria se ele assim
Não se chamasse. Despe esse teu nome,
E em troca desse título acessório
Toma-me a mim.

ROMEU:
Eu tomo a tua palavra:                                     [Para ela]
Não mais serei “Romeu” daqui em diante,
Batiza-me de novo como “amor”.

JULIETA:
Que homem és tu que oculto em plena noite
Invades meus cuidados?

ROMEU:
Por um nome
Não sei como dizer-te quem eu sou:
Odeio, amada santa, este meu nome,
Pois ele é para ti um inimigo.
Fosse el’ palavra escrita e rasgá-lo-ia.

JULIETA:
Ainda não ouvi uma centena
Destas falas e já conheço o som:
Não és tu tão Romeu quanto Montéquio?

ROMEU:
Nenhum, donzela, se ambos te desgostam.

JULIETA:
Diz-me: como e porquê chegaste aqui?
Os muros do pomar são escarpados,
E, sendo tu quem és, o sítio é morte
Se algum dos meus parentes te encontrar.

ROMEU:
Com asas muito leves sobrevoei
Tais barreiras de pedra derrotadas
Por quanto o amor é fiel ao seu possível:
Teus parentes não são maior entrave.

JULIETA:
É certa a tua morte, se el’s te virem.

ROMEU:
Ai!, nos teus olhos há bem mais perigo
Que em vinte espadas: olha com doçura,
E serás meu escudo contra o ódio.

JULIETA:
Só ‘spero que ninguém te veja aqui!

ROMEU:
Pelo manto da noite estou oculto,
E até me conviria essa tal morte,
Se, não me amando tu, me parecesse
Demasiado comprida a minha vida.

JULIETA:
Quem te disse o caminho para cá?

ROMEU:
O amor deu-me vontade e orientação,
E eu retribuí confiando-lhe os meus olhos.
Se estivesses tão longe quanto as praias
Mais longínquas, não sendo eu marinheiro,
Partiria por tal mercadoria.

JULIETA:
Se eu não tivesse a máscara da noite,
Tudo aquilo que ouviste pintaria
Um rubor de donzela em minha face.
Deveria negá-lo por decoro:
Só que às boas maneiras digo “adeus”!
Tu amas-me? Já sei que dirás “Sim”,
E em ti eu confiarei. Mas quem mais jura,
Mais mente: dos perjúrios dos amantes
Riem-se os deuses. Oh!, meu bom Romeu,
Se me amas, sê sincero quando o assumes:
Ou se achas que pareço mulher fácil,
Eu mostro-me perversa e digo “não”,
Na condição de assim me cortejares.
‘stou perdida de amor, belo Montéquio,
Pareço libertina à conta disso:
Mas, confia, serei bem mais fiel
Que aquelas que se mostram virtuosas.
Deveria ter tido mais recato,
Mas, se ouviste a verdade deste amor,
Foi sem querer. Desculpa, não confundas
Com ligeireza a minha rendição
Que a noite ‘inda que escura revelou.

ROMEU:
Senhora, pela santa lua eu juro,
Pela prata com que ela cobre as árvores –

JULIETA:
Não jures pela lua, essa inconstante
Que em sua esfera muda mês a mês,
Não vá ser teu amor assim volúvel.

ROMEU:
Por quem devo jurar?

JULIETA:
Oh!, por ninguém:
Ou então, por tua graça apenas jura,
És o Senhor da minha adoração,
Da fé toda a razão.

ROMEU:
Se o meu amor –

JULIETA:
Não jures. A alegria que me dás,
Não a sinto no pacto desta noite:
É súbito demais, irrefletido,
Relâmpago já findo no momento
Em que é posto em palavras. Sim, boa noite!
Quando me reencontrares, o ar do estio
Terá feito o botão do amor florir.
Boa noite, seja suave o teu descanso
Como aquel’ que em meu peito mora manso.

ROMEU:
Oh! deixar-me-ás assim insatisfeito?

JULIETA:
Mas qual satisfação querias hoje?

ROMEU:
Só a troca das juras fieis de amor.

JULIETA:
A minha, sem ma ter’s pedido eu dei-ta:
Ah!, se ela em minha posse ‘inda estivesse…


ROMEU:
Com que intenção, amor? P’ra a retirares?

JULIETA:
Para ta dar de novo, com candura.
E, contudo, desejo o que já tenho.
Pois sou tão generosa quanto o mar,
E tão profunda: quanto mais te dou,
Mais tenho, é dupla a nossa infinidade.
Ouço ruído lá dentro. Amor, adeus! –
[Fora de cena, a ama chama por Julieta]
Já vou, ama! – Montéquio, sê leal.
Fica apenas um pouco, que eu já volto.                       [Sai, por cima]

ROMEU:
Oh! noite tão bendita que me faz
Recear que por ser noite eu viva um sonho,
Um deleite que iluda a realidade.

[Surge Julieta em cima]

JULIETA:
Duas palavras, amor, e então boa noite.
Se pretendes honrar-me em casamento,
Informa o mensageiro que amanhã
Eu te enviarei, da hora e do lugar
Em que o ritual será cumprido, e então,
A teus pés estará minha fortuna,
E seguir-te-ei, senhor, por toda a parte.
[Fora de cena, a ama chama: “Minha senhora!”]
Já vou. – Mas se não tens intenções puras,
Imploro-te –
[Fora de cena, a ama chama: “Minha senhora!”]
Eu vou já sem demora. –
Que a luta cesses, deixa-me em pesar.
Amanhã se fará.

ROMEU:
Disso dependo –

JULIETA:
Mil vezes boa noite!                                   [Sai, por cima]

ROMEU:
Mil vezes entristeço sem tua luz.
O amor do amor se afasta com o amuo
Da criança que retorna para o estudo.                   [Romeu começa a afastar-se]

[Surge Julieta de novo em cima]

JULIETA:
Ouve! Tivesse eu voz de falcoeiro,
P’ra fazer regressar a minha ave!
A servidão é rouca, fala baixo,
Senão eu forçaria a gruta de Eco,
P’ra lhe impor rouquidão maior que a minha
Com a repetição do meu “Romeu”.

ROMEU:
É a minha própria alma que me chama.
Que bem soam à noite os namorados,
P’ra quem os ouve fazem suave música!

JULIETA:
Romeu!

ROMEU:
Avezinha?

JULIETA:
A que horas, amanhã, te envio alguém?

ROMEU:
Quando soarem as nove.

JULIETA:
Cumprirei: são vinte anos até lá.
Mas que outra coisa eu vinha te dizer?

ROMEU:
Até te recordares fico aqui.

JULIETA:
Só me recordarei de como gosto
Da tua companhia, fica então.

ROMEU:
Não hás de ter nenhuma outra lembrança,
Nem eu hei de ter poiso senão este.

JULIETA:
Sendo quase manhã, quero que partas:
Não mais, porém, que a ave do garoto
Que a deixa voar um pouco da sua mão,
Prisioneira em grilheta retorcida,
E com fio de seda a traz de volta
Da liberdade até ao seu ciúme.

ROMEU:
Fosse eu essa tua ave.

JULIETA:
Digo o mesmo:
Mas ser-te-ia letal tanto cuidado.
Boa noite! É dor tão doce o ir’s embora,
Que eu direi boa noite até à aurora.                           [Sai, por cima]

ROMEU:
More sono em teus olhos, paz no peito!
Fosse eu tal sono e paz nesse teu leito!


William Shakespeare

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Soneto

Presa – a bolha
no espírito do nível,
criatura dividida;
e a agulha da bússola
oscilando e hesitando,
indefinida.
Solto – o mercúrio
do termómetro quebrado
fugindo à pressa;
e o pássaro-íris
do estreito bisel
do espelho sem ninguém,
voando p’ra qualquer sentido
da palavra “gay”!


Elizabeth Bishop

Uma Arte

Na arte de perder não custa ter mão;
tantas coisas já trazem na sua mente
a perda que o perdê-las não é aflição.

Perde algo cada dia. Aceita a agitação
da chave omissa, da hora que nada acrescente.
Na arte de perder não custa ter mão.

Põe pressa e põe distância na ambição:
perde um lugar, um nome, um destino pendente
de viagem. Nada disso trará aflição.

Não sei do relógio da minha mãe. E tão-
-pouco impedi que uma das casas se perdesse.
Na arte de que falo não custa ter mão.

Perdi duas belas cidades. E, noutro escalão,
reinos que eu tinha, dois rios, um continente.
Fazem-me falta, mas não foi uma aflição.

Mesmo o perder-te (a voz jocosa, uma expressão
que eu amo) não me desdirá. É evidente
que na arte de perder não custa muito ter mão
mesmo se ela for como (Escreve-o!) uma aflição.


Elizabeth Bishop

terça-feira, 6 de setembro de 2016

Sextina

A chuva de setembro cai sobre a casa,
fraqueja a luz. A velha avó
está sentada na cozinha com a criança
junto à oitava maravilha de um fogão.
Lê as anedotas do almanaque,
ri e fala para esconder as lágrimas,

julgando que o equinócio dessas lágrimas
e a chuva que bate no telhado da casa
foram ambos previstos pelo almanaque,
ainda que só fossem sabidos de uma avó.
A chaleira de ferro canta no fogão.
Ela corta pão e diz à criança,

Está na hora do chá; mas a criança
está de olhos postos na chaleira, nas duras lágrimas
que dançam como loucas no calor negro do fogão
exatamente como a chuva dança sobre a casa.
No afã de arrumar, a velha avó
pendura a inteligência do almanaque

na sua corda. Parece um pássaro, o almanaque,
pairando semiaberto sobre a criança,
pairando sobre a velha avó
e a sua chávena turvada de lágrimas.
Ela arrepia-se e diz que a casa
lhe parece fria, e põe mais lenha no fogão.

Era para ser, diz o fogão.
Sei o que sei, diz o almanaque.
Após ter posto mais firmeza na casa
que no caminho para lá chegar, a criança
acrescenta um homem com botões como lágrimas
e, orgulhosa, mostra o desenho à avó.

Secretamente, contudo, enquanto a avó
está atarefada em roda do fogão,
as pequenas luas caem como lágrimas
de dentro das páginas do almanaque
para dentro do canteiro de flores que a criança
colocara com primor em frente da casa.

É tempo de plantar lágrimas, diz o almanaque.
A avó canta para a maravilha do fogão
e a criança volta a desenhar uma inescrutável casa.


Elizabeth Bishop

O peixe

Apanhei um peixe tremendo
e ergui-o junto ao barco
metade fora da água, com o anzol
fixo num canto da sua boca.
O peixe não lutou.
Nem tinha lutado nada.
Só o seu peso gemia,
maltratado e venerando
e tosco. Aqui e ali
pedaços da sua pele pendiam
como velho papel de parede,
e o seu padrão de castanho mais escuro
era mesmo como papel de parede:
formas de rosas abertas
que o tempo tinha sujado e desbotado.
Estava crivado de cracas,
de delicadas rosetas de cal,
e infestado de piolhinhos brancos,
e por baixo pendiam
dois ou três farrapos de alga verde.
Enquanto as suas guelras inspiravam
o terrível oxigénio
– as guelras assustadoras,
estaladiças e frescas de sangue,
que podem fazer cortes tão dolorosos –
lembrei-me da sua carne branca
grosseira como penas em lata,
das grandes e pequenas espinhas,
dos negros e vermelhos dramáticos
das suas entranhas luzidias,
e da bexiga natatória cor-de-rosa
como uma grande peónia.
Olhei para os seus olhos
que eram bem maiores que os meus
mas mais profundos, e amarelecidos,
com as íris recuadas e como que embaladas
em papel de alumínio manchado
vistas através de umas lentes
feitas em cola de peixe já gasta.
Mexeram-se um pouco, mas não
para responder ao meu olhar fixo.
– Foi mais como o inclinar
de um objeto na direção da luz.
Admirei a sua face carrancuda,
o mecanismo do maxilar,
o que me levou a reparar
que do seu lábio inferior
– se àquilo se podia chamar lábio –
sinistro, húmido, bélico,
pendiam cinco velhos pedaços de linha de pesca,
ou quatro e uma sediela
trazendo o destorcedor ainda preso,
com todos os seus grandes anzóis
firmemente espetados na boca.
Uma linha verde, puída na extremidade
em que fora cortada, duas linhas mais pesadas,
e um delgado fio negro
ainda encrespado da tensão que o rompera
e deixara o peixe fugir.
Como medalhas com as suas fitas
puídas e trémulas,
uma barba de cinco pelos de sabedoria
arrastando-se desde o maxilar dorido.
Olhei e voltei a olhar
e uma vitória encheu até à borda
o barquinho que eu alugara,
desde o charco de imundície no porão
onde o óleo tinha espalhado um arco-íris
em torno do motor enferrujado
até ao laranja enferrujado do balde,
aos bancos rachados pela exposição ao sol,
aos toletes nas suas cordas,
aos limites do barco – até tudo ser
arco-da-aliança, arco-da-aliança, arco-da-aliança!
E eu deixei o peixe ir à confiança.


Elizabeth Bishop

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Na noite do adeus não entres em paz

Na noite do adeus não entres em paz,
Ser velho é arder em raiva ao fim do dia;
Ruge, ruge, é a luz que se desfaz.

Ao sábio, no termo, o escuro lhe apraz,
Mas como jamais o seu verbo fez chispa
Na noite do adeus não entra ele em paz.

O justo, lamentando as suas águas passadas
Em obras não dançadas numa verde baía,
Ruge, ruge, pois é a luz que se desfaz.

O bravo caçador e cantor do sol fugaz
Que só tarde percebe que fez elegia,
Na noite do adeus não entra ele em paz.

O sério, que quase só vê quando jaz
Que não ver pode ser meteoro de alegria,
Ruge, ruge, pois é a luz que se desfaz.

E tu, meu pai, desse auge amargo o ás,
Maldiz, bendiz-me, rogo, com teu pranto em ira.
Na noite do adeus não entres em paz.
Ruge, ruge, é a luz que se desfaz.


Dylan Thomas

A força que p'la mecha verde

A força que p’la mecha verde impele a flor
Minha verdura impele; a que estoura raízes
É minha destrutora.
E sou mudo a dizer à rosa retorcida
Que também meu frescor cai em febre invernosa.

A força que impele água p’las rochas, impele
Meu sangue; a que ressica os desbocados rios
Transmuda o meu em cera.
E sou mudo a bradar às minhas rubras veias
Que na fonte da serra a mesma boca suga.

A mão que redemoinha a água na poça, açula
A areia movediça; a que ata o vento em sopro
O meu sudário enfuna.
E sou mudo a dizer a alguém ante a sua forca
Que do meu barro é feita a cal viva do algoz.

Sanguessugam-se os lábios do tempo à nascente;
Goteja e empola o amor, mas o sangue cadente
Acalmará suas chagas.
E sou mudo a dizer a um climático vento
Que o tempo pulsa um Céu ao redor das estrelas.

E sou mudo a dizer ao sepulcro da amante
Que avança em meu lençol o retorcido verme.


Dylan Thomas

Nota Um

Algumas das traduções feitas a partir da língua inglesa têm sido objeto da preciosa ajuda de três académicos estado-unidenses:

Ricardo Vasconcelos,
Lauren Applegate,
Susan Pensak.

Aos três, o meu mais sentido agradecimento.

sábado, 27 de agosto de 2016

Introdução à poesia

Peço-lhes para tomarem um poema
E o segurarem contra a luz
Como um diapositivo

Ou então para encostarem o ouvido à sua colmeia.

Digo-lhes deitem um rato dentro do poema
E vejam como ele descobre a maneira de sair,

Ou caminhem dentro da sala do poema
E procurem às cegas um interruptor.

Quero que façam esqui aquático
À tona ondulante de um poema
E acenem ao nome do autor na margem.

Mas eles só sabem e querem
Amarrar o poema a uma cadeira
E torturá-lo até ele se confessar.

Começam a bater-lhe com uma mangueira
Para descobrirem o que ele quer dizer.


Billy Collins

Ode ao concreto

Meu bom velho cimento, durarás para além da minha vida,
como eu durei, assim consta, para além de alguma gente
que me tinha tomado, também, por uma espécie de via,
citando a cor dos olhos, ou o semblante.

Por isso eu louvo a tua porosa e inânime feição
não por inveja mas por ser um bem direto
parente – menos durável, em aflição
desconjuntado, ainda assim grato aos arquitetos.

Aplaudo a tua humilde – para ser mais exato,
insignificativa – origem, um rugir penetrante,
contudo condizente, na íntegra, com o abstrato
destino, fora do meu alcance.

Não é que o nada gere o seu género
mas que o futuro é por opção o pretendente
de um encontro tão às cegas quanto cego
e envolto em saia petrificada e ingente.


Joseph Brodsky

Os cisnes selvagens de Coole

As árvores estão em beleza de outono,
No bosque os trilhos estão secos,
Sob o crepúsculo de outubro as águas
Refletem céus quietos;
No lago que por pouco suas margens transcorre
Estão cisnes, cinquenta e nove.

Já o décimo nono outono sobre mim caiu
Desde essa primeira contagem;
Vi-os, antes de ter chegado ao fim,
De súbito elevarem-se
'spalhando rotação em argolas quebradas
Nas suas clamorosas asas.

Tais brilhantes criaturas contemplei,
E agora o coração tem mágoa.
Tudo mudou desde que, após eu ter ouvido,
No ocaso antigo desta margem,
Sobre a cabeça o toque-de-sino do voar,
Optei por um mais leve caminhar.

Não cansados ainda, amante junto a amante,
Eles remam nas frias
E gregárias correntes ou escalam o ar;
São corações sem velharia;
Paixão, conquista, errância a bel-prazer,
Ao seu serviço ainda hão de ter.

Mas agora el's flutuam nas águas paradas,
Tão belos e enigmáticos;
Entre que juncos construirão,
Junto a que orla de lago ou charco
Mostrarão seu encanto, quando eu despertar um dia
E perceber que eles partiram?


William Butler Yeats

domingo, 21 de agosto de 2016

O que a gente diz ao Poeta a propósito de flores

I

Sempre assim, versando o azul negro
Onde fede o mar de topázios,
Funcionará em teu encerro
O Lis dos clister’s extasiados!

No nosso tempo de sagus,
Em que as Plantas criam riqueza,
Bebe ‘inda o Lis desdéns azuis
Nas tuas Prosinhas de igreja!

– A flor-de-lis cara ao monárquico,
Soneto de conservador,
O Lis que, com cravo e amaranto,
É prémio dado ao Trovador!

A gente já não topa os Lírios!
Mas no teu Verso, como em mangas
De Pecadoras de andar fino,
Tremem ainda essas flor’s brancas!

Quando, meu Caro, tomas banho,
Tua camisa de axilas louras
(Sobre os miosótis conspurcados)
Incha co’a brisa das auroras!

O amor submete às tuas outorgas
Só Lilases, – ai que belezas!
Ou então Violetas dos Bosques,
Doce cuspo de Ninfas negras!...


II

Mesmo se tivésseis, ó Poetas!,
As Rosas, as Rosas tufadas,
Em pés de loureiro vermelhas,
E por mil oitavas inchadas!

Se, por BANVILLE elas nevassem,
Rodopiando em sanguinolência,
Pondo negro o olho do estranho
Que lê com má benevolência!

Dos vossos prados e florestas,
Ó fotógrafos de almas mansas!
A Flora é quase tão diversa
Como a das rolhas das garrafas!

Sempre esses vegetais Franceses,
Tinhosos, tísicos, patuscos,
Onde o ventre dos cães bassets
Atraca em paz de lusco-fuscos;

Sempre o desígnio, a imagem sórdida
Do Lótus azul ou do Helianto,
Sempre motivos cor-de-rosa
Para meninas comungando!

Como a janela e a puta é que
A Estrofe e a Ode Açoca calham;
Gordas de brilho, as borboletas:
P’ra os Malmequeres elas cagam.

Velha hortaliça, velho ferro!
Ó vegetativos biscoitos!
Ficções dos Salões de outro tempo!
– Não p’ra crótalos, p’ra besoiros,

Esses chorões a quem Grandville
Teria desenhado ourelas,
Aleitados p’lo colorido
De cruéis astros com viseiras!

Sim, os borrões de vossos pífaros
Produzem glicoses preciosas!
– Em velhos chapéus, ovos fritos,
Açoca, Lis, Lilás e Rosas!...


III

Ó branco Caçador sem meias,
Correndo na Pastagem pânica,
Não te passa pelas ideias
Saber melhor a tua botânica?

A Cantárida ao Grilo ruivo
Temo que suceder farias,
O Rio de ouro ao Reno azul,
Ou às Noruegas as Floridas:

Mas, hoje, já ninguém consente,
Em nome da Arte, – isto é verídico, –
Que um hexâmetro, qual serpente,
Cinja o esplendor de um Eucalipto;

Sim…! É como se os Acajus
Só servissem, mesmo nas Guianas,
P’ra quedas livres de sajus,
Em graves delírios de lianas!

– Em suma, uma Flor, morta ou viva,
Lírio ou Alecrim, chega aos pés
Do excremento da ave marinha?
De uma só lágrima de vela?

– Eu não sou dado a hipocrisias!
Mesmo lá, sentado na choça
De bambu, – persianas corridas,
Tudo forrado a chita tosca, –

Do cu limpavas florações
Dignas de Oises extravagantes!...
– Poeta! não são estas razões
Menos risíveis que arrogantes!...


IV

Fala, não das pampas vernais
Negras de medonhas revoltas,
Mas de tabacos, de algodoais!
Fala das colheitas exóticas!

Não curtes Febo que te curta,
Mas diz a cotação em dólares
De Pedro Velasquez, em Cuba;
Caga p’ra os Cisnes aos magotes

Que avançam no mar de Sorrento;
Do entulho abatido dos mangues
Que ondas e hidras vão remexendo
Sejam tuas estrofes reclames!

No bosque em sangue a quadra afunda,
Falarás aos teus Semelhantes
De assuntos vários: dos açúcares,
De borrachas e pectorantes.

Saibamos por Ti se os dourados
Dos Picos nevados, nos Trópicos,
São obra de insetos poedastros
Ou de líquenes microscópicos.

Caçador, tens de descobrir
Umas garanças perfumadas
Que a Natura faça eclodir
Em calças! – p’ra as Forças Armadas!

Encontra, no Bosque com sono,
As Flores, com ar de focinho,
Que babujam pomadas de ouro
Em Bisões de pelo sombrio!

No Azul dos prados loucos onde
Treme a prata das pubescências,
Encontra Cálix cheios de Ovos
Cozendo em fogo entre as essências!

Encontra esses Cardos lanosos
Que dez asnos de olho a brilhar
Trabalham fiando os seus nós!
E Flor’s p’ra a gente se sentar!

– Acha no imo dos negros veios
As Flor’s quase pedras, – famosas! –
Que em seus duros, louros ovários,
Têm amígdalas gemosas!

Tu podes servir-nos, Farsante,
Em prata de extremo requinte,
Ragus de Lírios tão picantes
Que roem talher’s de Alfenide!


V

Alguém falará do Amor lato,
Ladrão de Indulgências obscuras:
Mas nem Renan, nem Murr (o gato)
De Azuis Tirsos viram alturas!

Os nossos torpores perfuma,
Faz funcionar as histerias;
Exalta-nos até canduras
Mais cândidas do que as Marias…

Comerciante! colono! médium!
Tua Rima brote, rosa ou branca,
Como uma emanação de sódio,
Como um caucho que se derrama!

Dos teus negros Malabarismos,
Refrações verbais em paletas,
Se evadam flores de prodígio
Com elétricas borboletas!

Aí está! é o Século do inferno!
E vão os postes telegráficos,
– Liras feitas p’ra cantar ferro,
Ornar teus ombros empolados!

– Rima, sim, uma explicação
Para o mal que afeta as batatas!
– E ainda, p’ra a composição
De Poemas cheios de charadas

Que a gente leia de Tréguier
A Paramaribo, visita
Os tomos do senhor Figuier,
Que o senhor Hachette publica!

        Alcides Babouce

(ou seja, Arthur Rimbaud)

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Festas da fome

.....Ana, ó Ana, a minha fome
.....Em cima da tua burra foge.

Já não tenho mais paladar
A não ser para terra e pedras.
Sempre que a barriga dá horas,
Comamos ferro, carvões, ar.

Minhas fomes, rodai, pastai
.....No farelório das pradarias!
E o veneno alegre aliciai
.....Dessas flores que são campainhas.

Comei
Calhaus por um pobre rachados,
As antigas pedras de igrejas,
Os seixos, de dilúvios nados,
Pães em cínzeos vales deitados!

Minhas fomes, bocados de ar negro;
.....É o firmamento sineiro;
- É o estômago que me demove.
.....É a má sorte.

Surgiram folhas sobre a terra:
Dou-me ao desfrute de um pomar velho.
Colho no seio de uma fenda
Alfaces de lobo e de cordeiro.

.....Ana, ó Ana! a minha fome
.....Em cima da tua burra foge.


Arthur Rimbaud

Vogais

A negro, E branco, I rubro, U verde, O azul: vogais,
De vós direi um dia as nascenças latentes:
A, veloso corpete de moscas frementes
Que bombinam em torno dos fedor's lobais,

Golfo umbroso; E, canduras de vapor's e tendas,
Tremor's de umbelas, reis brancos, lanças glaciais;
I, púrpuras, escarro em sangue, risos tais
Que o vinho e a ira tornam belos penitentes;

U, ciclos, vibrar sacro dos mar's em verdura,
Paz dos pastos em bichos férteis, paz das rugas
Que a alquimia transmite aos rostos estudiosos;

O, supremo Clarim de fragores estranhos,
Silêncios trespassados por Mundos, por Anjos,
Raio violeta - Ómega -, desses Seus Olhos!


Arthur Rimbaud

Oração da tarde

Qual Anjo no barbeiro, sentado é que eu vivo:
Cerveja em copo cheio de estrias gritantes,
Até ao pescoço arqueado o hipogástrio, um cachimbo
Nos dentes cobre os céus de impalpáveis velames.

Como excrementos quentes de um velho pombal,
Mil Sonhos em mim fazem azias amenas;
Por instantes o meu coração terno é um samo
Que ensanguenta o ouro jovem e escuro das perdas.

Mal engulo os meus sonhos com aplicação,
Tendo bebido uns trinta ou quarenta canecos,
É a hora do retiro, da acre dejeção:

Doce como o Senhor da trave e dos argueiros,
Mijo para os céus pardos, em toda a extensão,
E os grandes heliotropos respondem ordeiros.


Arthur Rimbaud

domingo, 7 de agosto de 2016

A minha Boémia (Fantasia)

Eu partia, de punhos nos bolsos rasgados;
Também o meu casaco se tornava ideal;
Ó Musa!, neste mundo eu seguia-te, leal;
Xi! que esplêndidos foram meus amor's sonhados!

Só tinha um par de calças com um grande furo.
- Pol'garzinho a sonhar, espalhava na estrada
Rimas. A Ursa Maior era a minha pousada.
- Faziam as estrelas um doce frufru

Que eu 'scutava sentado numa qualquer via,
Nas noites de um feliz Setembro em que sentia
Na minha testa o orvalho: um vinho de tesão;

Onde, a rimar em plenos negrumes fantásticos,
Tal como se de lira, eu puxava os elásticos
Do sapato ferido, um pé no coração!

Arthur Rimbaud

Na Taberna-Verde, cinco horas da tarde

Vinha há já oito dias a romper as botas
Nas pedras do caminho. Charleroi, por fim.
– Na Taberna-Verde: eu mandei vir umas tostas
Com manteiga e também fiambre um pouco aquecido.

Rei-criança, estiquei as pernas sob a mesa
Verde: então pus-me a olhar os motivos naïfs
De uma tapeçaria. - E foi uma beleza,
Quando a moça mamuda e de olhos atrevidos,

– Não há de esta ter medo de dar um linguado! –
Risonha, trouxe as tostas que eu tinha pensado
E fiambre morno em prato como el' colorido,

Róseo fiambre de aroma dado por um dente
De alho - e me enche a caneca enorme, com cerveja
Dourada por um raio de sol já antigo.

Arthur Rimbaud

Os deslumbrados

Negros na neve e na neblina,
Quando o respiradouro se ilumina,
.....Os seus cus lado a lado,

De joelhos, cinco miúdos - abjeção! –
Observam o Padeiro em confeção
.....Do denso pão dourado.

E veem que o seu braço branco mexe
Com nervo a massa parda, e que a mete
.....Numa fenda luzidia;

Ouvem o apetitoso pão cozer.
Canta o Padeiro, com sorriso cheio,
.....Uma velha melodia.

Estão bem aninhados, ninguém bule,
No calor do respiradouro rubro
.....Que é como um seio bom.

Quando, para um jantar à meia-noite,
Com forma de brioche,
.....Se faz sair o pão,

E, por baixo das vigas afumadas,
Se ouvem cantar as côdeas perfumadas
.....E ainda as cegarregas,

Quando enfim a fenda quente arfa com vida,
Eles ficam com a alma possuída
.....Sob as rotas farpelas,

E sentem-se viver com tanta gala,
Estes pobres Jesus cheios de geada,
.....Que lá 'stão eles, todos,

Colando ao gradeamento as focinheiras
Cor-de-rosa, rosnando baboseiras
.....Pelos rombos,

Uns animais que rezam orações
Tão inclinados sobre esses clarões
.....Do céu reaberto,

Que as suas calças rasgam
E deixam as camisas ao acaso
.....Do ar de inverno.

Arthur Rimbaud

terça-feira, 2 de agosto de 2016

Annie

No litoral do Texas
Entre Mobile e Galveston fica
Um grande jardim bem cheio de rosas
Contém ainda uma moradia
Que é uma grande rosa

No jardim costuma dar passeios
Uma mulher completamente sozinha
E quando eu passo na estrada bordada de tílias
Nós olhamos um para o outro

Como a mulher é menonita
Suas roseiras e roupas não usam botão
Faltam dois no meu jaquetão
Eu e a dama seguimos quase igual doutrina

Guillaume Apollinaire

Perplexo

Em Vila Plumitiva havia um velho escrevedor,
Chamado Homero Cícero Demóstenes Doutor.
“P’ra variar,” disse ele, “dos tratados ou ensaios,
Durante este serão escrevo um livro de catraios.”

Buscou seus calhamaços com bolor latino e grego;
Sondou enciclopédias, manuscritos de outro tempo,
Pesquisas sociológicas, estudos de equilíbrio –
“Para este público-alvo tal saber vem em auxílio.”

Obrou até bem tarde, escrevinhou certo e sabido,
Sentiu-se realizado ao dar o afã por concluído;
“O mérito do livro,” pensou ele, “é todo meu.”
E agora está perplexo pois nenhuma criança o leu.

Carolyn Wells

domingo, 31 de julho de 2016

Um discurso de despedida: proibindo o pranto

Como morrem com calma homens virtuosos,
.....E exilam a sua alma num sussurro,
Dizendo alguns amigos pesarosos:
....."Parte a respiração", e outros: "Não",

Assim soframos, sem qualquer barulho,
.....Sem fazermos do pranto tempestade;
Seria profanação do nosso júbilo
.....Do amor contar aos leigos a verdade.

Traz mal’s e medos o mover da Terra;
.....O Homem calcula qual o seu desígnio:
Mas a trepidação destas esferas
.....É inocente, apesar da vastidão.

O chato amor dos sublunar’s amantes
.....(Cuja a alma é os sentidos) não consente
A ausência, porque a ausência torna inane
.....Toda a matéria-prima que o preenche.

Mas nós, por um amor tão refinado
.....Que nem nós conhecemos o seu ser
(O espírito entre os dois assegurado),
.....Não tememos o que é carnal perder.

Assim, nossas duas almas, que uma são,
.....Deva eu partir embora, não padecem
Qualquer ruptura, antes expansão
.....Como ouro lapidado até ar leve.

Nossas almas são duas co’a condição
.....Dos exactos pés gémeos do compasso:
A tua, pé fixo, não dá a impressão
.....De se mover, mas da outra vai no encalço.

E embora ela no centro esteja assente,
.....Quando a outra, porém, longe anda a vaguear,
Inclina-se p’ra ouvir a discorrente,
.....E apruma-se se aquela volta ao lar.

Assim serás pr’a mim, que necessito,
.....Como o outro pé, de obliquamente andar:
Traça perfeito a tua firmeza o círculo
.....Que no início me leva a terminar.

John Donne

A pulga

Repara é nesta pulga, e nisso vê
Quão pouco aquilo que me negas é;
Sugou-me a mim, e agora a ti te suga,
'Stão nossos sangues em união na pulga;
Sabes que isto não pode ser tomado
Como defloração, como pecado,
.....Mas sem fazer a corte ela desfruta,
.....Intumesce de um sangue com origem dupla,
.....Ah, como isso é bem mais do que a nossa conduta.

Pára, três vidas numa pulga poupa,
Onde nós quase... não!, já sup'rámos a boda:
Esta pulga é tu e eu, e tal
É o nosso templo e o nosso leito nupcial;
Estamos, a despeito dos pais e de ti,
Reunidos neste vivo claustro de azeviche.
.....Mesmo se com direito me podes matar,
.....Não queiras, a esse tanto, o suicídio juntar,
.....E o sacrilégio, e assim por três vezes pecar.

Já purpureaste, com crueldade brusca,
Em sangue de inocência a tua unha?
De que pod'ria a pulga ser culpada,
Senão daquela gota que em ti foi sugada?
Todavia tu triunfas, e garantes
Que nenhum de nós dois 'stá mais fraco do que antes:
.....Certo; compreende então o absurdo dos receios;
.....Não terá mais valor, quando a mim te renderes,
.....A honra, que a vida que na pulga tu perdeste.


John Donne

O sonho

Querido amor, por nada menos do que tu
Teria interrompido este sonho ditoso;
.....O seu teor
Era forte demais para uma fantasia,
Por isso com razão me acordaste; e todavia
Mais do que interromper, tu continuaste o meu sonho,
Tu és tão realidade, que os teus meros pensamentos
Fazem, de devaneios, História e Verdade;
Deixa que eu te abrace: já que achaste mais certo
Que o sonho ficasse a meio, vivamos o seu resto.

Qual relâmpago, ou luz de círio,
O teu olhar, e não teu ruído, me acordou;
.....No entanto, à primeira vista,
Supus-te apenas Anjo (tu que amas a verdade),
Mas quando eu vi que conhecias
O meu imo, p'ra além do Anjo e sua arte,
Como sabias o que eu sonhava, e ainda quando
Me acordaria a euforia, e portanto vieste,
Confesso que seria uma evidente blasfémia
Supor-te um outro alguém que não tu mesma.

O teu vir e ficar mostrou que tu és tu,
Agora o levantar faz par'cer heresia
.....Essa tautologia.
O amor é fraco quando o medo é como ele forte;
E não é todo espírito valente e puro
Se tem mistura de honra, de medo ou vergonha.
Porventura como há quem a tempo e horas
Acenda e apague as tochas, assim comigo fazes,
Vieste p'ra inflamar, partiste p'ra voltar; então
P'ra não morrer, de novo sonharei essa esperança.

John Donne

O bom dia

Pergunto-me, por minha fé, o que eu e tu
Antes do amor fizemos? seríamos rústicos
Miúdos 'inda por desmamar? Arfávamos
Na caverna dos Sete Adormecidos?
Assim era.
Salvo este, todos os prazeres são caprichos.
Se alguma vez beleza alguma eu vi,
Desejei e alcancei, foi mero sonho de ti.

Agora, bom dia às nossa almas que acordam
E não se olham uma à outra devido ao medo;
Porque o amor, todo o amor de outras visões controla,
E de um pequeno quarto faz um universo.
Deixa que alguns por mar descubram novos mundos,
Que a outros os mapas mostrem os restantes fundos,
Fiquemos nós co' aquele que temos e somos.

Surge em teus olhos o meu rosto e surge o inverso,
Pois todo o puro coração jaz no semblante;
Onde acharemos nós dois melhores hemisférios
Sem o cortante Norte nem o Oeste declinante?
A morte é uma mistura não proporcional;
Se os nossos dois amor's são um, ou tão igual
É cada qual que nenhum pode embrandecer,
Nenhum pode então morrer.


John Donne