terça-feira, 30 de agosto de 2016

Na noite do adeus não entres em paz

Na noite do adeus não entres em paz,
Ser velho é arder em raiva ao fim do dia;
Ruge, ruge, é a luz que se desfaz.

Ao sábio, no termo, o escuro lhe apraz,
Mas como jamais o seu verbo fez chispa
Na noite do adeus não entra ele em paz.

O justo, lamentando as suas águas passadas
Em obras não dançadas numa verde baía,
Ruge, ruge, pois é a luz que se desfaz.

O bravo caçador e cantor do sol fugaz
Que só tarde percebe que fez elegia,
Na noite do adeus não entra ele em paz.

O sério, que quase só vê quando jaz
Que não ver pode ser meteoro de alegria,
Ruge, ruge, pois é a luz que se desfaz.

E tu, meu pai, desse auge amargo o ás,
Maldiz, bendiz-me, rogo, com teu pranto em ira.
Na noite do adeus não entres em paz.
Ruge, ruge, é a luz que se desfaz.


Dylan Thomas

A força que p'la mecha verde

A força que p’la mecha verde impele a flor
Minha verdura impele; a que estoura raízes
É minha destrutora.
E sou mudo a dizer à rosa retorcida
Que também meu frescor cai em febre invernosa.

A força que impele água p’las rochas, impele
Meu sangue; a que ressica os desbocados rios
Transmuda o meu em cera.
E sou mudo a bradar às minhas rubras veias
Que na fonte da serra a mesma boca suga.

A mão que redemoinha a água na poça, açula
A areia movediça; a que ata o vento em sopro
O meu sudário enfuna.
E sou mudo a dizer a alguém ante a sua forca
Que do meu barro é feita a cal viva do algoz.

Sanguessugam-se os lábios do tempo à nascente;
Goteja e empola o amor, mas o sangue cadente
Acalmará suas chagas.
E sou mudo a dizer a um climático vento
Que o tempo pulsa um Céu ao redor das estrelas.

E sou mudo a dizer ao sepulcro da amante
Que avança em meu lençol o retorcido verme.


Dylan Thomas

Nota Um

Algumas das traduções feitas a partir da língua inglesa têm sido objeto da preciosa ajuda de três académicos estado-unidenses:

Ricardo Vasconcelos,
Lauren Applegate,
Susan Pensak.

Aos três, o meu mais sentido agradecimento.

sábado, 27 de agosto de 2016

Introdução à poesia

Peço-lhes para tomarem um poema
E o segurarem contra a luz
Como um diapositivo

Ou então para encostarem o ouvido à sua colmeia.

Digo-lhes deitem um rato dentro do poema
E vejam como ele descobre a maneira de sair,

Ou caminhem dentro da sala do poema
E procurem às cegas um interruptor.

Quero que façam esqui aquático
À tona ondulante de um poema
E acenem ao nome do autor na margem.

Mas eles só sabem e querem
Amarrar o poema a uma cadeira
E torturá-lo até ele se confessar.

Começam a bater-lhe com uma mangueira
Para descobrirem o que ele quer dizer.


Billy Collins

Ode ao concreto

Meu bom velho cimento, durarás para além da minha vida,
como eu durei, assim consta, para além de alguma gente
que me tinha tomado, também, por uma espécie de via,
citando a cor dos olhos, ou o semblante.

Por isso eu louvo a tua porosa e inânime feição
não por inveja mas por ser um bem direto
parente – menos durável, em aflição
desconjuntado, ainda assim grato aos arquitetos.

Aplaudo a tua humilde – para ser mais exato,
insignificativa – origem, um rugir penetrante,
contudo condizente, na íntegra, com o abstrato
destino, fora do meu alcance.

Não é que o nada gere o seu género
mas que o futuro é por opção o pretendente
de um encontro tão às cegas quanto cego
e envolto em saia petrificada e ingente.


Joseph Brodsky

Os cisnes selvagens de Coole

As árvores estão em beleza de outono,
No bosque os trilhos estão secos,
Sob o crepúsculo de outubro as águas
Refletem céus quietos;
No lago que por pouco suas margens transcorre
Estão cisnes, cinquenta e nove.

Já o décimo nono outono sobre mim caiu
Desde essa primeira contagem;
Vi-os, antes de ter chegado ao fim,
De súbito elevarem-se
'spalhando rotação em argolas quebradas
Nas suas clamorosas asas.

Tais brilhantes criaturas contemplei,
E agora o coração tem mágoa.
Tudo mudou desde que, após eu ter ouvido,
No ocaso antigo desta margem,
Sobre a cabeça o toque-de-sino do voar,
Optei por um mais leve caminhar.

Não cansados ainda, amante junto a amante,
Eles remam nas frias
E gregárias correntes ou escalam o ar;
São corações sem velharia;
Paixão, conquista, errância a bel-prazer,
Ao seu serviço ainda hão de ter.

Mas agora el's flutuam nas águas paradas,
Tão belos e enigmáticos;
Entre que juncos construirão,
Junto a que orla de lago ou charco
Mostrarão seu encanto, quando eu despertar um dia
E perceber que eles partiram?


William Butler Yeats

domingo, 21 de agosto de 2016

O que a gente diz ao Poeta a propósito de flores

I

Sempre assim, versando o azul negro
Onde fede o mar de topázios,
Funcionará em teu encerro
O Lis dos clister’s extasiados!

No nosso tempo de sagus,
Em que as Plantas criam riqueza,
Bebe ‘inda o Lis desdéns azuis
Nas tuas Prosinhas de igreja!

– A flor-de-lis cara ao monárquico,
Soneto de conservador,
O Lis que, com cravo e amaranto,
É prémio dado ao Trovador!

A gente já não topa os Lírios!
Mas no teu Verso, como em mangas
De Pecadoras de andar fino,
Tremem ainda essas flor’s brancas!

Quando, meu Caro, tomas banho,
Tua camisa de axilas louras
(Sobre os miosótis conspurcados)
Incha co’a brisa das auroras!

O amor submete às tuas outorgas
Só Lilases, – ai que belezas!
Ou então Violetas dos Bosques,
Doce cuspo de Ninfas negras!...


II

Mesmo se tivésseis, ó Poetas!,
As Rosas, as Rosas tufadas,
Em pés de loureiro vermelhas,
E por mil oitavas inchadas!

Se, por BANVILLE elas nevassem,
Rodopiando em sanguinolência,
Pondo negro o olho do estranho
Que lê com má benevolência!

Dos vossos prados e florestas,
Ó fotógrafos de almas mansas!
A Flora é quase tão diversa
Como a das rolhas das garrafas!

Sempre esses vegetais Franceses,
Tinhosos, tísicos, patuscos,
Onde o ventre dos cães bassets
Atraca em paz de lusco-fuscos;

Sempre o desígnio, a imagem sórdida
Do Lótus azul ou do Helianto,
Sempre motivos cor-de-rosa
Para meninas comungando!

Como a janela e a puta é que
A Estrofe e a Ode Açoca calham;
Gordas de brilho, as borboletas:
P’ra os Malmequeres elas cagam.

Velha hortaliça, velho ferro!
Ó vegetativos biscoitos!
Ficções dos Salões de outro tempo!
– Não p’ra crótalos, p’ra besoiros,

Esses chorões a quem Grandville
Teria desenhado ourelas,
Aleitados p’lo colorido
De cruéis astros com viseiras!

Sim, os borrões de vossos pífaros
Produzem glicoses preciosas!
– Em velhos chapéus, ovos fritos,
Açoca, Lis, Lilás e Rosas!...


III

Ó branco Caçador sem meias,
Correndo na Pastagem pânica,
Não te passa pelas ideias
Saber melhor a tua botânica?

A Cantárida ao Grilo ruivo
Temo que suceder farias,
O Rio de ouro ao Reno azul,
Ou às Noruegas as Floridas:

Mas, hoje, já ninguém consente,
Em nome da Arte, – isto é verídico, –
Que um hexâmetro, qual serpente,
Cinja o esplendor de um Eucalipto;

Sim…! É como se os Acajus
Só servissem, mesmo nas Guianas,
P’ra quedas livres de sajus,
Em graves delírios de lianas!

– Em suma, uma Flor, morta ou viva,
Lírio ou Alecrim, chega aos pés
Do excremento da ave marinha?
De uma só lágrima de vela?

– Eu não sou dado a hipocrisias!
Mesmo lá, sentado na choça
De bambu, – persianas corridas,
Tudo forrado a chita tosca, –

Do cu limpavas florações
Dignas de Oises extravagantes!...
– Poeta! não são estas razões
Menos risíveis que arrogantes!...


IV

Fala, não das pampas vernais
Negras de medonhas revoltas,
Mas de tabacos, de algodoais!
Fala das colheitas exóticas!

Não curtes Febo que te curta,
Mas diz a cotação em dólares
De Pedro Velasquez, em Cuba;
Caga p’ra os Cisnes aos magotes

Que avançam no mar de Sorrento;
Do entulho abatido dos mangues
Que ondas e hidras vão remexendo
Sejam tuas estrofes reclames!

No bosque em sangue a quadra afunda,
Falarás aos teus Semelhantes
De assuntos vários: dos açúcares,
De borrachas e pectorantes.

Saibamos por Ti se os dourados
Dos Picos nevados, nos Trópicos,
São obra de insetos poedastros
Ou de líquenes microscópicos.

Caçador, tens de descobrir
Umas garanças perfumadas
Que a Natura faça eclodir
Em calças! – p’ra as Forças Armadas!

Encontra, no Bosque com sono,
As Flores, com ar de focinho,
Que babujam pomadas de ouro
Em Bisões de pelo sombrio!

No Azul dos prados loucos onde
Treme a prata das pubescências,
Encontra Cálix cheios de Ovos
Cozendo em fogo entre as essências!

Encontra esses Cardos lanosos
Que dez asnos de olho a brilhar
Trabalham fiando os seus nós!
E Flor’s p’ra a gente se sentar!

– Acha no imo dos negros veios
As Flor’s quase pedras, – famosas! –
Que em seus duros, louros ovários,
Têm amígdalas gemosas!

Tu podes servir-nos, Farsante,
Em prata de extremo requinte,
Ragus de Lírios tão picantes
Que roem talher’s de Alfenide!


V

Alguém falará do Amor lato,
Ladrão de Indulgências obscuras:
Mas nem Renan, nem Murr (o gato)
De Azuis Tirsos viram alturas!

Os nossos torpores perfuma,
Faz funcionar as histerias;
Exalta-nos até canduras
Mais cândidas do que as Marias…

Comerciante! colono! médium!
Tua Rima brote, rosa ou branca,
Como uma emanação de sódio,
Como um caucho que se derrama!

Dos teus negros Malabarismos,
Refrações verbais em paletas,
Se evadam flores de prodígio
Com elétricas borboletas!

Aí está! é o Século do inferno!
E vão os postes telegráficos,
– Liras feitas p’ra cantar ferro,
Ornar teus ombros empolados!

– Rima, sim, uma explicação
Para o mal que afeta as batatas!
– E ainda, p’ra a composição
De Poemas cheios de charadas

Que a gente leia de Tréguier
A Paramaribo, visita
Os tomos do senhor Figuier,
Que o senhor Hachette publica!

        Alcides Babouce

(ou seja, Arthur Rimbaud)

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Festas da fome

.....Ana, ó Ana, a minha fome
.....Em cima da tua burra foge.

Já não tenho mais paladar
A não ser para terra e pedras.
Sempre que a barriga dá horas,
Comamos ferro, carvões, ar.

Minhas fomes, rodai, pastai
.....No farelório das pradarias!
E o veneno alegre aliciai
.....Dessas flores que são campainhas.

Comei
Calhaus por um pobre rachados,
As antigas pedras de igrejas,
Os seixos, de dilúvios nados,
Pães em cínzeos vales deitados!

Minhas fomes, bocados de ar negro;
.....É o firmamento sineiro;
- É o estômago que me demove.
.....É a má sorte.

Surgiram folhas sobre a terra:
Dou-me ao desfrute de um pomar velho.
Colho no seio de uma fenda
Alfaces de lobo e de cordeiro.

.....Ana, ó Ana! a minha fome
.....Em cima da tua burra foge.


Arthur Rimbaud

Vogais

A negro, E branco, I rubro, U verde, O azul: vogais,
De vós direi um dia as nascenças latentes:
A, veloso corpete de moscas frementes
Que bombinam em torno dos fedor's lobais,

Golfo umbroso; E, canduras de vapor's e tendas,
Tremor's de umbelas, reis brancos, lanças glaciais;
I, púrpuras, escarro em sangue, risos tais
Que o vinho e a ira tornam belos penitentes;

U, ciclos, vibrar sacro dos mar's em verdura,
Paz dos pastos em bichos férteis, paz das rugas
Que a alquimia transmite aos rostos estudiosos;

O, supremo Clarim de fragores estranhos,
Silêncios trespassados por Mundos, por Anjos,
Raio violeta - Ómega -, desses Seus Olhos!


Arthur Rimbaud

Oração da tarde

Qual Anjo no barbeiro, sentado é que eu vivo:
Cerveja em copo cheio de estrias gritantes,
Até ao pescoço arqueado o hipogástrio, um cachimbo
Nos dentes cobre os céus de impalpáveis velames.

Como excrementos quentes de um velho pombal,
Mil Sonhos em mim fazem azias amenas;
Por instantes o meu coração terno é um samo
Que ensanguenta o ouro jovem e escuro das perdas.

Mal engulo os meus sonhos com aplicação,
Tendo bebido uns trinta ou quarenta canecos,
É a hora do retiro, da acre dejeção:

Doce como o Senhor da trave e dos argueiros,
Mijo para os céus pardos, em toda a extensão,
E os grandes heliotropos respondem ordeiros.


Arthur Rimbaud

domingo, 7 de agosto de 2016

A minha Boémia (Fantasia)

Eu partia, de punhos nos bolsos rasgados;
Também o meu casaco se tornava ideal;
Ó Musa!, neste mundo eu seguia-te, leal;
Xi! que esplêndidos foram meus amor's sonhados!

Só tinha um par de calças com um grande furo.
- Pol'garzinho a sonhar, espalhava na estrada
Rimas. A Ursa Maior era a minha pousada.
- Faziam as estrelas um doce frufru

Que eu 'scutava sentado numa qualquer via,
Nas noites de um feliz Setembro em que sentia
Na minha testa o orvalho: um vinho de tesão;

Onde, a rimar em plenos negrumes fantásticos,
Tal como se de lira, eu puxava os elásticos
Do sapato ferido, um pé no coração!

Arthur Rimbaud

Na Taberna-Verde, cinco horas da tarde

Vinha há já oito dias a romper as botas
Nas pedras do caminho. Charleroi, por fim.
– Na Taberna-Verde: eu mandei vir umas tostas
Com manteiga e também fiambre um pouco aquecido.

Rei-criança, estiquei as pernas sob a mesa
Verde: então pus-me a olhar os motivos naïfs
De uma tapeçaria. - E foi uma beleza,
Quando a moça mamuda e de olhos atrevidos,

– Não há de esta ter medo de dar um linguado! –
Risonha, trouxe as tostas que eu tinha pensado
E fiambre morno em prato como el' colorido,

Róseo fiambre de aroma dado por um dente
De alho - e me enche a caneca enorme, com cerveja
Dourada por um raio de sol já antigo.

Arthur Rimbaud

Os deslumbrados

Negros na neve e na neblina,
Quando o respiradouro se ilumina,
.....Os seus cus lado a lado,

De joelhos, cinco miúdos - abjeção! –
Observam o Padeiro em confeção
.....Do denso pão dourado.

E veem que o seu braço branco mexe
Com nervo a massa parda, e que a mete
.....Numa fenda luzidia;

Ouvem o apetitoso pão cozer.
Canta o Padeiro, com sorriso cheio,
.....Uma velha melodia.

Estão bem aninhados, ninguém bule,
No calor do respiradouro rubro
.....Que é como um seio bom.

Quando, para um jantar à meia-noite,
Com forma de brioche,
.....Se faz sair o pão,

E, por baixo das vigas afumadas,
Se ouvem cantar as côdeas perfumadas
.....E ainda as cegarregas,

Quando enfim a fenda quente arfa com vida,
Eles ficam com a alma possuída
.....Sob as rotas farpelas,

E sentem-se viver com tanta gala,
Estes pobres Jesus cheios de geada,
.....Que lá 'stão eles, todos,

Colando ao gradeamento as focinheiras
Cor-de-rosa, rosnando baboseiras
.....Pelos rombos,

Uns animais que rezam orações
Tão inclinados sobre esses clarões
.....Do céu reaberto,

Que as suas calças rasgam
E deixam as camisas ao acaso
.....Do ar de inverno.

Arthur Rimbaud

terça-feira, 2 de agosto de 2016

Annie

No litoral do Texas
Entre Mobile e Galveston fica
Um grande jardim bem cheio de rosas
Contém ainda uma moradia
Que é uma grande rosa

No jardim costuma dar passeios
Uma mulher completamente sozinha
E quando eu passo na estrada bordada de tílias
Nós olhamos um para o outro

Como a mulher é menonita
Suas roseiras e roupas não usam botão
Faltam dois no meu jaquetão
Eu e a dama seguimos quase igual doutrina

Guillaume Apollinaire

Perplexo

Em Vila Plumitiva havia um velho escrevedor,
Chamado Homero Cícero Demóstenes Doutor.
“P’ra variar,” disse ele, “dos tratados ou ensaios,
Durante este serão escrevo um livro de catraios.”

Buscou seus calhamaços com bolor latino e grego;
Sondou enciclopédias, manuscritos de outro tempo,
Pesquisas sociológicas, estudos de equilíbrio –
“Para este público-alvo tal saber vem em auxílio.”

Obrou até bem tarde, escrevinhou certo e sabido,
Sentiu-se realizado ao dar o afã por concluído;
“O mérito do livro,” pensou ele, “é todo meu.”
E agora está perplexo pois nenhuma criança o leu.

Carolyn Wells