quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Um dos que a noite conheceu

Já fui um dos que a noite conheceu.
Cheguei a andar na rua a apanhar chuva.
E a ir onde a cidade passa a breu.

Só tive olhos p’ra a viela mais soturna
E ao passar pelo guarda no seu giro
Baixei-os p’ra manter a causa muda.

Cessei o som dos pés, fiquei tolhido
Por um clamor errático e distante
Que veio de outra rua ter comigo

P’ra nada me dizer de confortante;
E um luminar relógio sobre o céu
Proclamou nessa altura exorbitante

Que a hora nem ‘stava certa nem com erro.
Já fui um dos que a noite conheceu.


Robert Frost

Canis Major

Esse Acima de cão
Grande besta celeste
Com uma estrela num olho
Dá um salto no leste.

Ele dança de pé
No caminho do ocidente
E nem uma vez cai
Sobre as patas desistente.

Já eu sou abaixo de cão
Mas esta noite vou ladrar
Com o grande lá de Cima
Que corre o escuro a brincar.


Robert Frost

Parando junto ao bosque em noite de neve

Quem julgo deste bosque ser senhor
Tem casa no povoado – é de supor
Que não verá que, neste paradeiro,
Contemplo a neve encher tudo ao redor.

Aviso, o meu cavalo é bem matreiro:
Parámos entre o bosque e o lago gélido,
Sem casa à vista, aliás, longe de tudo,
Na noite mais escura do ano inteiro…

Tem guizos nos arreios, não é mudo,
E quer saber se há aqui caso bicudo.
Só outro impulso então se faz ouvir:
O vento suave e a neve de veludo.

Cerrado, o bosque tenta persuadir,
Mas eu tenho promessas a cumprir,
E muito para andar até dormir,
E muito para andar até dormir.


Robert Frost

Desígnio

Vi uma aranha com covinhas nas bochechas, branca,
Erguendo uma traça numa flor branca de erva-férrea
Como se erguesse uma toalha de cetim, branca e tesa –
Personagens reunidas num cenário de matança,
Combinadas (pois há que começar bem a manhã)
Num caldo que as bruxas por certo trariam p’ra a mesa –
Era uma aranha quase neve, e uma espuminha de erva,
E asas tão mortas como um papagaio de criança.

Por que razão essa flor ficou assim toda branca,
Ela, que é sempre azul, sempre inocente em seu decoro?
O que guiou a aranha e a traça em clara semelhança
P’la noite até à altura misteriosa de uma planta?
Nenhuma cor resiste a um desígnio tão tenebroso?
Se é que um desígnio rege algo tão pouco grandioso.


Robert Frost

terça-feira, 20 de setembro de 2016

O caminho não tomado

Numa bifurcação de um bosque amarelo,
Lamentei não poder ser um só viajante
Viajando pelos dois destinos, e quieto
Perante um dos caminhos, fiquei a vê-lo
Até el’ se sumir no mato distante;

Decidi tomar o outro, tão belo e justo,
E tendo a seu favor talvez mais razões,
Já que erva assim tão densa pedia uso;
Só que o trânsito que houve nos dois percursos
Desgastou-os em quase iguais proporções,

E nessa manhã quase iguais el’s jaziam
Em folhas que nenhum passo enegrecera.
Oh, deixei o primeiro para outro dia!
Mas sei: se toda a via gera outra via,
Voltar aqui é coisa mais do que incerta.

Hei de estar a contar isto, suspirando,
Algur’s daqui a um ror infindo de tempo:
Numa bifurcação de um bosque – ousado,
Eu tomei o caminho menos viajado,
E isso fez com que tudo fosse diferente.


Robert Frost

Bétulas

Quando o vaivém das bétulas se afirma
Na rigidez escura que há no bosque,
Gosto de achar que é arte de um miúdo.
Se a tempestade as verga, sem retorno
O faz. Muitas vezes as terás visto
Carregadas de gelo após a chuva
Na manhã de inverno. Dão estalidos
Quando levanta a aragem, e o seu esmalte
É varado por cortes e por cores.
O sol então descasca em avalanche
Esse cristal sobre o manto de neve –
Tanto é o caco p’ra varrer que eu pergunto
Se a cúpula do céu terá caído…
Vergadas até ao feto murcho, elas
Parecem não quebrar, mas quando em baixo
Por muito tempo, não mais se endireitam:
Podes ver, anos depois, os seus troncos
Arqueados, quais raparigas de gatas
Secando ao sol os cabelos lançados
Para a frente, por cima das cabeças.
Mas antes da interrupção da Verdade
Com o prosaísmo da sua borrasca
Eu defendia a tese desse miúdo
Brincando enquanto conduzia as vacas –
Um miúdo alheio ao beisebol da vila,
Entretendo-se sozinho, de inverno
Ou de verão, com tudo o que encontrasse.
Domou, uma a uma, todas as árvores
Do seu pai, cavalgando-as tantas vezes
Que todas lhe entregaram a firmeza,
E nenhuma ficou por amaciar,
Nenhuma por vencer. Foi aprendendo
A não as lançar demasiado cedo
Pr’a evitar que fossem arrebatadas
Até ao chão. Mantinha um equilíbrio
Permanente até ao cimo, trepando
Com os mesmos cuidados com que tu
Desafias a borda de uma chávena.
Só então, sibilando, se lançava
Com o impulso dos pés até ao chão.
Também eu fiz das bétulas baloiço.
E a tal muito gostava de voltar.
Quando estou cheio de cogitações,
E a vida é como um bosque sem caminhos
Onde o rosto se aflige co’a coceira
Das teias de aranha, e um olho chora
Porque foi atingido por um galho.
Pudesse eu sair da terra um instante
E a seguir regressar em recomeço…
Não se arme o destino em sonso e me dê
Só metade do que peço, levando-me
Para não mais voltar. Pois só na terra
Há ‘spaço para o sucesso do amor.
Eu gostava de ir só até ao céu,
Subindo os ramos negros da brancura
De neve de uma bétula e descendo
Quanto, já no limite, ela cedesse.
Ir e vir no baloiço de uma bétula:
Há maneiras pior’s de se viver.


Robert Frost

Após a apanha da maçã

Ainda as hastes da longa escada rompem a árvore
Na direção do Céu,
Permanece um barril que não se encheu
A seu lado, e talvez em qualquer ramo
Penda por colher alguma maçã.
Mas chega de colheita para já.
Há na noite a essência da hibernação,
Cheira a fruta: começo a adormecer.
Tenho agarrada aos olhos a impressão
Sentida ao ver a relva encanecida
Através da película de gelo
Que retirei da água de uma tina.
Ao derreter, deixei-a estilhaçar-se.
Antes, porém, de ela cair,
‘stava eu já a caminho de dormir,
Podendo pressentir
A forma que o meu sonho ia tomar.
Maçãs vão e vêm, descomunais,
Mostram com toda a nitidez
Os seus menor’s recantos e sinais.
Sinto ainda o meu pé a lastimar
A pressão que um degrau nele exerceu.
E sinto que a escada está mal assente.
E continuo a ouvir vindo da adega
O inconfundível escarcéu:
A maçã chega até se dizer chega.
Porque já tive a minha dose
De apanha de maçãs. Já me cansei
Da grande colheita que ambicionei.
Todo um pomar na sua apoteose
Em mãos lutando p’ra nada perder:
Pois qualquer
Fruto que à terra caia,
Mesmo que a colisão não o machuque,
Ficará, sem valor, ao abandono
Na pilha à sidra reservada.
Percebe-se que tal perturbe
O sono que há de vir, seja el’ qual for.
Se ainda estivesse aqui,
A marmota diria o seu teor,
Se é vasto sono como descrevi,
Se mais humano sono.


Robert Frost

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

O comboio

Gosto de o ver papar as léguas,
E devorar os vales,
Parando p’ra comer só nas cisternas;
E andar, depois, tão colossal,

Em torno de uma pilha de montanhas,
E sondar, com toda a sua soberba,
As choças que ladeiam as estradas;
E depois desbastar uma pedreira

Para o seu corpo caber nela,
Ainda que rasteje versejando
A mais ruidosa e horrenda queixa;
E a si mesmo seguir p’lo monte abaixo

E relinchar como Boanerges;
E enfim, pontual como uma estrela,
Parar – dócil e todo-poderoso –
À porta da cocheira.


Emily Dickinson

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

O mercado dos duendes

De manhã e à noitinha
As donzelas ouviam pregões de duendes:
“Venham comprar os frutos do nosso pomar,
Venham comprar, comprar:
Marmelos e maçãs,
Laranjas e limões,
Cerejas bem cheiinhas que ninguém ‘inda bicou,
Melões e framboesas,
Bochechas de veludo a que nós chamamos pêssegos,
Uvas-dos-montes livres desde o berço,
Amoras tão vermelhas
E amoras que são pretas ou silvestres,
Alperces, maçãs bravas,
Morangos, ananases; –
Todos amadurados em conjunto
Com tempo de verão, –
Alvoreceres passam,
Bonitas tardes vão;
Venham comprar, comprar:
Uvas acabadinhas de apanhar,
Romãs grandes e boas,
Abrunhos acres, tâmaras,
Arandos, peras raras,
E até rainhas-cláudias,
P’ra quem quiser provar:
Groselhas variegadas,
E bérberis em brasa,
Figos que a boca aguarda,
Limas vindas do Sul,
Dulçor p’ra a língua e para o olhar saúde;
Venham comprar, comprar.”

E assim, tarde após tarde,
Entre os juncos das margens do regato,
Lizzie inclinava-se p’ra ouvir,
Laura encobria o seu rubor:
Acocoradas lado a lado,
Refrescadas pelo tempo,
De braços enlaçados e lábios prevenidos,
Com coceira nas faces e nas pontas dos deditos.
“Não te afastes,” disse Laura,
Erguendo a testa dourada:
“Não devemos contemplar estes duendes,
Não devemos comprar os seus artigos:
Ninguém sabe que solo satisfez
Toda a avidez das suas raízes.”
“Venham comprar,” gritam os duendes
P’lo vale abaixo a manquejar.
“Oh” gritou Lizzie, “Laura, Laura,
Não espreites esses homens.”
Lizzie cobriu então os olhos,
Fechou-os bem não fossem el’s olhar;
Mas Laura alçou a testa bem lustrosa,
E murmurou como rio sem parar:
“Admira Lizzie, admira,
P’lo vale abaixo arrastam-se homenzinhos.
Um del’s carrega um cesto,
Um outro arrasta um prato,
Um puxa uma travessa
Que val’ todo o peso em ouro.
Quão bela deve ser a vinha
Que gera uvas tão gostosas;
Quanto calor terá a brisa
Que sopra em tais pomares.”
“Não,” disse Lizzie: “Não, não, não;
Seus dons não devem encantar-nos
Pois são ofertas com peçonha.”
Meteu seus dedos nos ouvidos,
Fechou os olhos e fugiu:
Laura, curiosa, quis ficar
Para admirar cada tratante.
Um tinha cara de gato,
Um sacudia uma cauda,
Um caminhava a passo de rato,
Um arrastava-se à caracol,
Outro rondava, obtuso e peludo,
Como se fosse um marsupial,
Outro ainda caía à sorte
À maneira do ratel.
Ela julgou ouvir vozes de pombos
Vibrando num arrulho de conjunto:
El’s par’ciam gentis, cheios de amor,
Sob um clima de júbilo profundo.

Seu pescoço fulgente esticou Laura
Como um cisne embutido em plenos juncos,
Como um lírio que vive no riacho,
Como um ramo de álamo ao luar,
Ou a largada daquel’ navio
Que já ninguém pode amarrar.

Pelo val’ musgoso acima
Regressavam os duendes em conjunto,
Repetindo os pregões bem estridentes,
“Venham comprar, comprar”.
Tendo chegado ao pé de Laura
Ficaram quietos sobre o musgo,
Olhar’s marotos repartidos
Entre a estroinice dos irmãos;
Sinais secretos compartidos
Entre a malícia dos irmãos.
Um del’s pôs o cesto no solo,
Um outro ergueu o seu prato;
Outro teceu uma coroa
Com folhas, cirros e umas nozes
Que não se encontram em nenhum lugar;
Com ‘sforço um levantou o peso fulvo
De uma travessa com fruta para lhe dar:
“Venham comprar, comprar,” era ainda o seu pregão.
De olhos arregalados, Laura não buliu,
Frustrada pela falta de dinheiro:
Um del’s, com cauda louca, incitou-a a provar
Num tom de voz tão suave como o mel,
O da cara de gato ronronou,
O do passo de rato apresentou as boas vindas,
O do passo de caracol falou;
Outro, de alegre voz de papagaio,
Em vez de “Levo-te uma carta”
Exclamou “Compra-me esta fruta”, –
Qual pássaro, houve um outro que assobiou.

Mas à pressa falou a ávida Laura:
“Boa gente, não tenho como vos pagar;
Se eu me servir é o mesmo que roubar:
Não tenho cobre em minha bolsa,
Também não tenho prata,
Todo o meu ouro está no tojo
Que treme em tempo ventoso
Sobre a urze ferruginosa.”
“Na tua cabeça tens muito ouro,”
Foi a resposta deles todos:
“Podes pagar co’um caracol dourado.”
E um caracol precioso ela cortou,
E pérola valiosa ela chorou,
Depois chupou o frutedo rubro ou claro:
Mais doce que o mel do rochedo,
Mais forte que o vinho exaltante,
Mais claro do que água corria aquel’ sumo;
Nunca antes provara ela nada par’cido,
Por mais que o bebesse o fastio era nulo.
Chupou e chupou e chupou mais ainda
Os frutos que o ignoto pomar produzia;
Chupou até a boca ficar dolorida;
As cascas sem nada depois deitou fora,
No entanto apanhou um caroço co’ amêndoa,
E já não sabia se dia era ou noite
Ao voltar p’ra casa sozinha.

Lizzie foi ter com a irmã ao portão,
Sábia com mil reprimendas
“Querida, não deves tardar assim tanto,
O anoitecer é mau para as donzelas;
Peço que não te demores no vale
Nos lugares onde param os duendes.
Não te lembras da Jeanie,
Como ela os encontrou à luz da lua,
Tomou suas prendas muitas e de classe,
Comeu sua fruta e usou suas flor’s colhidas
Naquel’s boudoirs de sombras dos jardins
Onde sempre o verão amadurece?
Mas desde então à luz que vem do sol
Ela foi definhando e definhando;
Buscou-os dia e noite, tudo em vão,
Mas foi encanecendo e estiolando;
Caiu depois com a primeira neve,
E até hoje nenhuma erva cresce
Onde ela jaz p’ra sempre:
Há um ano atrás plantei lá bem-me-queres,
Os quais nunca florescem.
Não deves regressar tão tardiamente.”
“Caluda!,” disse Laura:
“Caluda!, minha irmã:
Eu comi e comi à discrição,
Contudo ainda sinto água na boca;
Na noite de amanhã
Comprarei mais;” e deu-lhe um beijo:
“Não te queixes;
Amanhã vou trazer-te ameixas frescas
Que ainda vêm presas aos seus ramos,
E cerejas que valem toda a pena;
Nem consegues imaginar os figos
Que os meus dentes puderam penetrar,
O monte de melões frios
Sobre uma travessa de ouro
Grande demais p’ra eu segurar,
O aveludado da pele dos pêssegos,
A transparência das uvas sem grainha:
Bem odorosa será a campina
Onde eles crescem, e pura a torrente
Que eles bebem com lírios pela beira,
E doce como açúcar a sua seiva.”

Dourada testa junto a testa igual,
Como em seu ninho duas pombas mantendo
As asas enlaçadas,
Sob um dossel estão deitadas:
Como duas flores num só caule,
Ou dois cristais recém-nevados,
Como dois cetros de marfim e ponta de ouro
Para reis que são medonhos.
As estrelas e a lua contemplavam-nas,
Com seu cantar os ventos embalavam-nas,
Abstinham-se de voar mochos pesados,
Nenhum vaivém se ouvia de morcegos
À volta da sua paz:
Face com face e os peitos bem juntinhos,
Abraçam-se uma à outra no seu ninho.

De manhã cedo
Quando o primeiro galo deu o aviso,
Puras como as abelhas, doces, lestas,
As duas levantaram-se:
Foram buscar o mel, ordenharam as vacas,
Arejaram, puseram em ordem a casa,
Com o trigo mais branco cozinharam bolos
Destinados a bocas requintadas,
Depois bateram natas, fizeram manteiga,
Deram comida às aves e por fim sentaram-se
Costurando e falando com justo recato:
Lizzie de alma aberta,
Laura absorta em sonhos,
Uma contente, a outra em parte doente;
Uma chilreando o bem do dia claro,
A outra pela noite suspirando.

Chegou por fim o entardecer moroso:
Munidas com seus jarros deslocaram-se
Até junto do arroio bem juncoso;
A Lizzie estava plácida no olhar,
Mas Laura era uma chama a saltitar.
Da profundez tiraram gorgolejos de água;
Colheu Lizzie os mais ricos lírios de ouro e roxo,
E a olhar p’ra casa disse: “O pôr-do-sol já cora
Lá muito ao longe aqueles penhascos grandiosos;
Vem, Laura, não há moça que fique p’ra trás,
Nenhum teimoso esquilo ‘inda se mexe,
Animais e aves dormem como pedras.”
Mas entre os juncos Laura ‘inda tardava,
Dizia: “A margem é muito empinada.

Ainda é cedo, o orvalho não caiu,
O vento não gelou;”
Tentava em vão ‘scutar o usual pregão,
O reiterado jingle todo feito
De iscos de açúcar presos às palavras
“Venham comprar, comprar”.
Por muito que observasse,
Não discernia um duende só que fosse,
Mancando, correndo, caindo em confusão;
Quanto mais a multidão
Que por norma rojava pelo vale
De feirantes notáveis p’la malícia,
Traficando ora a solo ora em equipa.

Mas Lizzie insistiu, “Oh! Laura, vem;
Ouço o pregão, porém não ouso olhar:
Não deves mais tardar junto a este riacho:
Vem p’ra casa comigo.
Já há ‘strelas no céu, flete a lua o seu arco,
Cintila o pirilampo,
Vamos antes de a noite se toldar:
Pois, apesar de estarmos no verão,
Os nimbos podem sempre cumular-se,
Podem fechar as luzes e encharcar-nos;
Se nos perdêssemos, o que faríamos?”

Laura foi trespassada pelo frio
Ao notar que o pregão só p’la irmã era ouvido,
Aquel’ pregão dos duendes,
“Venham comprar, comprar os nossos frutos.”
Não mais pod’rá comprar fruta tão fina?
Não mais encontrará o pasto sucoso,
Como se fosse surda e também cega?
Desde a raiz murchou sua árvore da vida;
Calou-se ante a severa dor do coração;
Mas, às apalpadelas no escuro cerrado,
Arrastou-se p’ra casa, o seu jarro pingando;
Rastejou até à cama, e assim se deitou
Silenciosa até Lizzie adormecer;
Depois sentou-se em ânsia apaixonada,
Rangeu frustrada os dentes, e chorou
Como se o coração fosse romper.

Dia após dia, noite após noite,
Laura montou a sua guarda em vão
Num silêncio soturno de extrema aflição.
Jamais voltou a ouvir aquel’ clamar:
“Venham comprar, comprar;” –
Jamais voltou a espiar os homens duendes
Seus frutos apregoando pelo vale:
Mas ao se encher de brilho a meia-noite
Ficou o seu cabelo fino e pardo;
Ela mirrava, lua cheia e clara
Que súbita declina e o seu fogo
Consome até à ruína.

Certo dia lembrando-se do seu caroço
Plantou-o junto a um muro virado a sul;
Orvalhou-o com choro, sonhou uma raiz,
‘sperou o crescimento de um rebento,
Mas nenhum apareceu;
Nunca este viu a luz,
Nunca sentiu a seiva correr gota a gota:
Enquanto de olhos fundos e apagada boca
Ela ideava melões, como um viajante vê
No deserto ondas falsas
Com árvores monarcas das suas sombras,
E na brisa de areia arde ‘inda mais sedento.

Deixou, pois, de varrer a casa,
De tratar das galinhas ou das vacas,
De arranjar mel, de cozinhar bolos de trigo,
De trazer água da ribeira:
Mas sentou-se delida num cantinho da lareira
E sem querer comer.

Não suportava a terna Lizzie
Ver o cuidado que ulcerava a sua irmã
Sem o poder partilhar.
De noite ou de manhã
‘Inda ouvia o pregão:
“Venham comprar os frutos do nosso pomar,
Venham comprar, comprar:” –
P’lo vale fora, perto do ribeiro,
Ela ouvia o rastejo dos duendes,
A voz e o reboliço
Que a pobre Laura não podia ouvir;
Ansiava comprar fruta p’ra a alentar,
Mas temia pagar caro demais.
Lembrava-se da Jeanie na sua campa,
Que deveria ter sido uma noiva;
Mas que ao gozar prazer’s que as noivas sonham
Adoeceu e morreu
Na primavera da sua vida,
No início da estação mais fria,
Com a primeira geada luzidia,
Com a primeira neve da invernia.

Até que Laura, decaindo,
Par’cia estar às portas já da Morte:
Então Lizzie perdeu o calculismo
(O que era, ao fim a ao cabo, melhor ou pior?);
E metendo na bolsa uma moeda de prata,
Beijou Laura e cruzou, sob luz crepuscular,
O maciço tojal, até chegar ao riacho:
Aí pela primeira vez na vida
Começou a ouvir, começou a olhar.

Todos os duendes se riram
Quando a toparam a espreitar:
Vieram ter com ela a manquejar,
A correr, a voar, a saltar, a arquejar,
A bater palmas, a rir por entre dentes,
A fazer có có ró e glu glu glu,
Peritos na careta e no esgar,
Cheios de boas maneiras,
Mas fazendo caras feias
E momices circunspectas,
Como ratos ou ratéis,
Como gatinhos, – marsupiais,
Em passo de apressados caracóis,
Assobiando à papagaio,
Sem rei nem roque, a trouxe-mouxe,
Tagarelando como pegas,
Esvoaçando como pombos,
Ou deslizando como peixes, –
E abraçaram-na e beijaram-na,
E apertaram-na em carícias:
Estenderam-lhe os seus pratos,
Os seus cestos e travessas:
“Vem ver as nossas maçãs
(Temos golden e reinetas),
Abocanha estas cerejas
E mordisca os nossos pêssegos,
Temos limas, temos tâmaras,
Tantas uvas que é só pedir,
Temos peras que avermelharam
Por passarem o tempo ao sol,
Temos ameixas nos seus galhos;
Anda lá: arranca, chupa,
Os figos e as romãs.” –

“Boa gente”, disse Lizzie,
Sempre com Jeanie na mente:
“Dêem-me muito, muitíssimo:” –
E estendeu o seu avental,
E pagou a dinheiro o destino.
“Ai, não senhora, senta-te connosco,
Dá-nos a honra de comer’s connosco,”
Disseram el’s de tacha arreganhada:
“’stá mesmo a começar esta festança.
A noite ‘inda agora é uma criança,
Quentinha e aljofarada,
Sem sono e estrelada:
É que frutos como estes não podem
Ser levados por mão de Homem:
Metade do seu veludo voaria,
Metade do seu rocio secaria,
Metade mesmo do seu sabor
Passaria despercebido.
Senta-te e festeja connosco,
Convive, ó bem-vinda, connosco,
Desfruta e descansa connosco.” –
“Obrigada,” disse Lizzie: “Mas há uma pessoa
Sozinha lá em casa esperando por mim.
Assim sendo, acabou-se o parlamento:
Se não me vão vender fruto nenhum
Ainda que eles sejam um milhão,
Passem p’ra cá a prata que vos dei
Como gratificação.” –
Então, el’s desataram a coçar as tolas
(Acabara-se a cauda mansa e o ronronar),
Puseram-se a discutir,
A grunhir e a rosnar.
Um chamou-lhe emproada,
Intratável, grosseira;
Falavam de voz exaltada,
Olhavam de maneira malfazeja.
Sacudindo com fúria as caudas,
Eles pisaram-na e empurraram-na
Co’ encontrões e cotoveladas,
Arranharam-na com as unhas,
Ladrando, miando, pateando,
Depois rasgaram-lhe o vestido
E macularam-lhe o collant,
Arrancaram-lhe algum cabelo,
Pisaram os seus pezinhos,
Prenderam as suas mãos
E espremeram-lhe na boca a fruta
Para a obrigar a engolir.

A branca e fulva Lizzie manteve-se impávida,
Como um lírio cercado p’la enxurrada, –
Como a venação garça de uma rocha
Com ‘strondo fustigada por marés, –
Como um farol deixado à sua sorte
Num mar imemorial e barulhento,
Arremessando o brilho da sua chama, –
Como a árvore coroada de laranjas
E branca de botões doces com mel
Sitiada em dor p’la vespa e pela abelha, –
Como a cidade virgem, principesca,
Com profusão dourada de pináculos,
Sob o vizinho cerco de uma esquadra
Ansiosa por arriar a sua bandeira.

Mas pode-se levar o burro à fonte,
Não se pode é obrigá-lo a beber.
Por isso, embora os duendes lhe batessem,
A combatessem, a aliciassem,
Fizessem bullying, suplicassem,
A arranhassem e com beliscões pintassem
Até ela enegrecer,
A pontapeassem, a empurrassem,
A achincalhassem e espancassem,
Lizzie não soltou uma só palavra;
Nem deixava um do outro os lábios se afastarem,
Não fossem aquel’s duendes mercadores
Enfiar-lhe um pedacinho boca adentro:
Mas dentro havia apenas o seu riso
Ao sentir o gotejar daquel’ xarope
Que cobria a sua face,
E se alojava nas covinhas do seu queixo,
E que riscava o seu pescoço que tremia
Tal e qual uma coalhada.
Por fim as criaturas malfazejas,
Batidas por tão grande relutância,
Fizeram-lhe o reembolso, e chutaram os seus pomos
Por todos os atalhos nos quais se dissiparam,
Sem deixarem raízes, caroços ou renovos;
Alguns serpentearam para dentro do chão,
Alguns, com ondinhas circulares,
Mergulharam no arroio,
Alguns deslizaram para o vento
Sem fazerem um som,
Alguns desapar’ceram na distância.

Ardendo em ânsia,
Lizzie foi-se embora;
Não sabia se era noite ou dia a hora;
Trepou a margem, percorreu o tojo,
Atravessou bosquetes e gargantas,
E ouvia a sua moeda chocalhar
Quando saltava no seu bolso, –
Nada menos do que música.
Fartou-se de correr
Como se receasse que algum duende
Corresse atrás de si com seus remoques
Ou outra coisa pior:
Mas não havia duende acossador,
Nem ‘stava ela acirrada pelo medo;
Era o bom coração que a compelia,
Com rapidez de vento,
Na direção de casa.
Seu fôlego era pouco para a pressa
E p’ra o riso interior.

Pelo jardim acima, gritou ”Laura,
Sentiste a minha falta?
Vem beijar-me.
Não te importes co’as minhas pisaduras,
Beija-me, abraça-me, suga estes meus sumos
Espremidos dos frutos dos duendes para ti,
São polpa e são orvalho de duende.
Come-me, bebe-me, ama-me;
E põe-me bem nos píncaros, ó Laura:
Por tua causa eu afrontei o vale
E tive de lidar com o seu mal.”

Laura sobressaltou-se na cadeira,
Agitou os seus braços pelo ar,
Agarrou a cabeleira:
“Lizzie, Lizzie, tu provaste
Por minha causa o fruto proibido?
Também a tua luz será ‘scondida,
Também tua juventude dissipada,
Desgraçada em minha desgraça,
Arruinada em minha ruína,
Ulcerada, sequiosa, pelos duendes subjugada?” –
Agarrou-se à sua irmã,
Beijou-a sem parar:
Caindo como chuva
Após uma aflitiva seca,
De novo refrescaram suas lágrimas
Os olhos evidentes de magreza;
Tremendo de pavor febril, de dor,
Beijou-a sem parar com boca ávida.

Os lábios começaram a queimar,
Para o seu paladar aquel’ sumo era absinto,
Ela odiou o festim:
Possuída em contorções pôs-se a saltar e a cantar,
Rasgou a sua roupa,
Torceu as mãos em lamentosa urgência,
Pôs-se a bater no peito.
Seus caracóis tremiam como a tocha
Que leva um corredor em disparada,
Ou como a crina de um cavalo em fuga,
Como a águia quando avança contra a luz
A direito na direção do sol,
Como uma coisa presa libertada,
Ou como uma bandeira esvoaçando
Quando correm os exércitos.

Um fogo rápido alastrou ao coração,
Achou aí um outro fogo a bruxulear
E subjugou a sua diminuta chama;
Amargura sem nome ela comeu até fartar:
Ah! sua louca, escolher um tal quinhão
De aperto de alma!
A consciência falhou na mortal liça:
Qual torre de vigia estilhaçada
Por um tremor de terra na cidade,
Qual mastro por relâmpago atingido,
Qual árvore arrancada p’ra raiz
Ao vento rodopiando,
Qual tromba-d’água alçando a sua espuma
Lançada de cabeça sobre o oceano,
Ela caiu por fim;
Tão livre de prazer como de angústia,
É morte ou vida?

Vida oriunda da morte.
Vigiou-a Lizzie ao longo dessa noite,
Contou-lhe o enfraquecer da pulsação,
Sentiu-lhe o custo da respiração,
Levou água aos seus lábios, refrescou a sua face
Com lágrimas e leques que eram folhas:
Mas quando nos beirais aves cantaram,
E os matinais ceifeiros se arrastaram
Para os lugar’s dourados por paveias,
E a relva com orvalho se vergou
P’ra deixar passar ventos apressados,
E botões novos com o novo dia
Abriram lírios que eram cálices no arroio,
Laura acordou como no fim de um sonho,
E riu-se, inocente como dantes,
Abraçou Lizzie sem querer parar;
Cinzento não havia nos seus caracóis brilhantes,
Seu hálito era fresco como Maio,
E a luz fazia danças no olhar.

Passados muitos dias, meses, anos,
As duas já casadas,
Já tendo descendência;
O medo à espreita em cada alma materna,
Suas vidas em união com ternas vidas;
Laura chamava os filhos pequeninos
P’ra lhes falar da sua juventude,
Dias de plenitude há muito idos,
Tempo que não regressa:
Falava sobre o assombrado vale,
Sobre o bizarro mal daquel’s feirantes,
Seus frutos como mel p’ra o paladar
Mas veneno para o sangue;
(Frutos que não se encontram em nenhum lugar).
Falava da firmeza da sua irmã
Que em perigo de vida lhe trouxera
O antídoto benéfico e escaldante:
Depois juntava as mãos às mãos pequenas
Num convite à unidade,
“Não há maior amiga que uma irmã
Em tempo de bonança ou tempestade;
Para nos animar na adversidade,
P’ra nos chamar de novo de novo ao bom caminho,
Para nos levantar se vacilarmos,
P’ra nos dar força enquanto resistimos.”


Christina Rossetti

terça-feira, 13 de setembro de 2016

O palácio de Pã

Setembro, glorioso com ouro, qual rei
    No brilho do triunfo ataviado,
Mais claro que o estio, mais doce que Abril,
Os bosques incuba com asa infinita,
    Presença querida do humano.

As terras pintadas p’lo sol posto e nado
    Sob quente sorriso sorriem;
Mais nobre que um templo por mão levantado,
Coluna a coluna, o santuário se apruma
    Das naves sem fim dos pinhais.

Um culto eloquente, sem prece ou louvor,
    O espírito ocupa com paz,
Preenchida co’o sopro do fúlgido ar,
O odor, os silêncios, as sombras tão claras
    Quais raios crescendo e cedendo.

Pilar’s angulosos que coram longe e alto,
    Com ramo nenhum para um ninho,
Sustêm o tecto sublime e cabal,
À prova do sol, do tufão, colossal,
    Como águas paradas terrível.

Mão de homem jamais a sua altura mediu;
    Razão também não, nem temor;
A trama do bosque em tal sombra é tecida;
O sol como um pássaro cai na armadilha,
    E espalha, nevando, os seus flocos.

Plumagem só de ouro, tais flocos de sol
    Repousam na terra aos montões,
Quais pétalas soltas de rosas sem c’roa
No chão da floresta sombrosa e dourada,
    Corada tão perto e tão longe.

As mãos insondáveis de turvas idades
    Ergueram o templo em retiro
P’ra deuses ignotos, e na ara queimaram
Os anos em pó, e a as areias que o frasco
    Do tempo esqueceu como indício.

Um templo que em milhas calcula os transeptos,
    Que tem como padre a manhã,
Que livra o seu chão do pisar dos ineptos,
Sua música é a música só dos silêncios,
    Bem mais que espectác’lo é a festança.

Sucedem-se as horas litúrgicas, nunca
    O ofício nos vela ou revela,
Nas rampas das terras sem flor’s nem verdura,
O encalço de um fauno, uma pista de ninfa
    Até ao deus Pã em dormência.

O espírito, ateado p’lo pasmo e p’lo culto
    Num êxtase sacro em braveza
Perante os tais rastos que fendem o rumo,
Só ele discerne se em torno dos quais
    Existe uma prova do deus.

Com rubro temor mais profundo que o pânico
    A mente rendida e inconcussa
Escuta a terrena e Titã divindade
Nos passos sentidos em brechas vulcânicas
    De abismos já sem o seu lume.

Por artes mais calmas que as negras magias
    Da morte, da noite e de antanho,
Que o vil frenesi que assombrava o mei’-dia
Onde o Etna se forma dos membros gigantes
    De deuses sem trono e sem vida,

Nossa alma fundida co’ aquel’ cujo sopro
    Sublima o mei’-dia do bosque
Suporta o fulgor da presença que fala
De coisas além, mais serenas que a morte,
    De um Tempo que vence e que cala.


Algernon Charles Swinburne

Um par

Se o amor fosse o que é a rosa,
    E eu tal como a folha fosse,
Medraríamos a par
Com pesar no clima ou júbilo,
Vento ou flor abrindo o solo,
    Prazer verde ou parda dor;
Se o amor fosse o que é a rosa,
    E eu tal como a folha fosse.

Fosse eu tal como as palavras,
    E o amor como a cantiga,
Com som dual e um só deleite
Ligar-se-iam nossos lábios
Em felizes beijos de ave
    Fresca à chuva do mei’-dia;
Fosse eu tal como as palavras,
    E o amor como a cantiga.

Se, meu bem, fosses a vida,
    E eu teu caro a morte a fosse,
Brilho e neve os dois seríamos
Até Março trazer graça
Com narcisos e estorninhos
    E um sem-fim de fértil sopro;
Se, meu bem, fosses a vida,
    E eu teu caro a morte fosse.

Se da mágoa fosses serva,
    E eu um pajem para o gozo,
Toda a vida folgaríamos
Com olhinhos e traições,
Choros da alva e da noitinha,
    Irrisões de moça e moço;
Se da mágoa fosses serva,
    E eu um pajem para o gozo.

Se de Abril tu fosses lady,
    E fosse eu um lorde em Maio,
Jogaríamos com folhas
E com flor’s empataríamos
Até ser sombrio o dia
    E ao contrário a noite clara;
Se de Abril tu fosses lady,
    E fosse eu um lorde em Maio.

Se reinasses no prazer,
    E eu da dor fosse o monarca,
O amor ambos caçaríamos,
Seu voar depenaríamos
P’ra aos seus pés darmos um metro
E à sua boca rédea curta;
Se reinasses no prazer,
    E eu da dor fosse o monarca.


Algernon Charles Swinburne

domingo, 11 de setembro de 2016

"Romeu e Julieta" - Ato II, Cena II

[Surge Julieta em cima]

ROMEU:
Calma!, que luz é aquela na janela?
É o leste e traz Julieta como um sol.
Sobe, formoso sol, e mata a lua,
Que sofre da anemia do ciúme,
Pois tu, sua devota, és mais formosa:
Não ‘stejas ao serviço da ciumenta:
Seu hábito vestal é doença verde
Que só os tolos usam, tira-o já.
Minha senhora, Oh!, meu grande amor!
Oh!, se ela já o soubesse!
Parece que ela fala sem falar…
Respondo a esses olhos que conversam?
Que audaz! Não é a mim que el’s se dirigem:
Ausentes em trabalho, duas estrelas
Pediram aos seus olhos p’ra brilharem
Nas órbitas enquanto elas não voltam.
E se entre si trocassem de lugar?
Sua face humilharia essas estrelas
(Um sol p’ra duas candeias), e os seus olhos
Escoariam no céu tão grande brilho
Que as aves cantariam em delírio.
Como ela apoia o rosto sobre a mão!
Fosse eu nessa mão luva p’ra poder
Tocar seu rosto!

JULIETA:
Ai de mim!

ROMEU:
Falou:                                                   [À parte]
Oh!, fala uma outra vez, anjo brilhante,
Pois nesta noite tu és gloriosa
Como é no céu o alado mensageiro
P’ra os olhos revirados em espanto
Dos mortais que se inclinam para o ver
Quando ele monta nuvens indolentes,
E voga em pleno âmago do ar.

JULIETA:
Por que razão, Romeu, és tu “Romeu”?
Nega o teu pai e o nome que vem dele,
Ou então jura que és o meu amor,
E eu não mais saberei ser Capuleto.

ROMEU:
Ouço ainda ou respondo já a isto?                                   [À parte]

JULIETA:
Por inimigo tenho só teu nome,
Montéquio ou não, tu és sempre tu mesmo.
O que é “Montéquio”? Não é mão nem pé,
Nem braço, rosto, nada que componha
Um corpo humano. Sê um outro nome.
Vale isso o quê? Teria a rosa odor
Tão doce se outro nome fosse o seu.
A cara perfeição que Romeu tem
Também se manteria se ele assim
Não se chamasse. Despe esse teu nome,
E em troca desse título acessório
Toma-me a mim.

ROMEU:
Eu tomo a tua palavra:                                     [Para ela]
Não mais serei “Romeu” daqui em diante,
Batiza-me de novo como “amor”.

JULIETA:
Que homem és tu que oculto em plena noite
Invades meus cuidados?

ROMEU:
Por um nome
Não sei como dizer-te quem eu sou:
Odeio, amada santa, este meu nome,
Pois ele é para ti um inimigo.
Fosse el’ palavra escrita e rasgá-lo-ia.

JULIETA:
Ainda não ouvi uma centena
Destas falas e já conheço o som:
Não és tu tão Romeu quanto Montéquio?

ROMEU:
Nenhum, donzela, se ambos te desgostam.

JULIETA:
Diz-me: como e porquê chegaste aqui?
Os muros do pomar são escarpados,
E, sendo tu quem és, o sítio é morte
Se algum dos meus parentes te encontrar.

ROMEU:
Com asas muito leves sobrevoei
Tais barreiras de pedra derrotadas
Por quanto o amor é fiel ao seu possível:
Teus parentes não são maior entrave.

JULIETA:
É certa a tua morte, se el’s te virem.

ROMEU:
Ai!, nos teus olhos há bem mais perigo
Que em vinte espadas: olha com doçura,
E serás meu escudo contra o ódio.

JULIETA:
Só ‘spero que ninguém te veja aqui!

ROMEU:
Pelo manto da noite estou oculto,
E até me conviria essa tal morte,
Se, não me amando tu, me parecesse
Demasiado comprida a minha vida.

JULIETA:
Quem te disse o caminho para cá?

ROMEU:
O amor deu-me vontade e orientação,
E eu retribuí confiando-lhe os meus olhos.
Se estivesses tão longe quanto as praias
Mais longínquas, não sendo eu marinheiro,
Partiria por tal mercadoria.

JULIETA:
Se eu não tivesse a máscara da noite,
Tudo aquilo que ouviste pintaria
Um rubor de donzela em minha face.
Deveria negá-lo por decoro:
Só que às boas maneiras digo “adeus”!
Tu amas-me? Já sei que dirás “Sim”,
E em ti eu confiarei. Mas quem mais jura,
Mais mente: dos perjúrios dos amantes
Riem-se os deuses. Oh!, meu bom Romeu,
Se me amas, sê sincero quando o assumes:
Ou se achas que pareço mulher fácil,
Eu mostro-me perversa e digo “não”,
Na condição de assim me cortejares.
‘stou perdida de amor, belo Montéquio,
Pareço libertina à conta disso:
Mas, confia, serei bem mais fiel
Que aquelas que se mostram virtuosas.
Deveria ter tido mais recato,
Mas, se ouviste a verdade deste amor,
Foi sem querer. Desculpa, não confundas
Com ligeireza a minha rendição
Que a noite ‘inda que escura revelou.

ROMEU:
Senhora, pela santa lua eu juro,
Pela prata com que ela cobre as árvores –

JULIETA:
Não jures pela lua, essa inconstante
Que em sua esfera muda mês a mês,
Não vá ser teu amor assim volúvel.

ROMEU:
Por quem devo jurar?

JULIETA:
Oh!, por ninguém:
Ou então, por tua graça apenas jura,
És o Senhor da minha adoração,
Da fé toda a razão.

ROMEU:
Se o meu amor –

JULIETA:
Não jures. A alegria que me dás,
Não a sinto no pacto desta noite:
É súbito demais, irrefletido,
Relâmpago já findo no momento
Em que é posto em palavras. Sim, boa noite!
Quando me reencontrares, o ar do estio
Terá feito o botão do amor florir.
Boa noite, seja suave o teu descanso
Como aquel’ que em meu peito mora manso.

ROMEU:
Oh! deixar-me-ás assim insatisfeito?

JULIETA:
Mas qual satisfação querias hoje?

ROMEU:
Só a troca das juras fieis de amor.

JULIETA:
A minha, sem ma ter’s pedido eu dei-ta:
Ah!, se ela em minha posse ‘inda estivesse…


ROMEU:
Com que intenção, amor? P’ra a retirares?

JULIETA:
Para ta dar de novo, com candura.
E, contudo, desejo o que já tenho.
Pois sou tão generosa quanto o mar,
E tão profunda: quanto mais te dou,
Mais tenho, é dupla a nossa infinidade.
Ouço ruído lá dentro. Amor, adeus! –
[Fora de cena, a ama chama por Julieta]
Já vou, ama! – Montéquio, sê leal.
Fica apenas um pouco, que eu já volto.                       [Sai, por cima]

ROMEU:
Oh! noite tão bendita que me faz
Recear que por ser noite eu viva um sonho,
Um deleite que iluda a realidade.

[Surge Julieta em cima]

JULIETA:
Duas palavras, amor, e então boa noite.
Se pretendes honrar-me em casamento,
Informa o mensageiro que amanhã
Eu te enviarei, da hora e do lugar
Em que o ritual será cumprido, e então,
A teus pés estará minha fortuna,
E seguir-te-ei, senhor, por toda a parte.
[Fora de cena, a ama chama: “Minha senhora!”]
Já vou. – Mas se não tens intenções puras,
Imploro-te –
[Fora de cena, a ama chama: “Minha senhora!”]
Eu vou já sem demora. –
Que a luta cesses, deixa-me em pesar.
Amanhã se fará.

ROMEU:
Disso dependo –

JULIETA:
Mil vezes boa noite!                                   [Sai, por cima]

ROMEU:
Mil vezes entristeço sem tua luz.
O amor do amor se afasta com o amuo
Da criança que retorna para o estudo.                   [Romeu começa a afastar-se]

[Surge Julieta de novo em cima]

JULIETA:
Ouve! Tivesse eu voz de falcoeiro,
P’ra fazer regressar a minha ave!
A servidão é rouca, fala baixo,
Senão eu forçaria a gruta de Eco,
P’ra lhe impor rouquidão maior que a minha
Com a repetição do meu “Romeu”.

ROMEU:
É a minha própria alma que me chama.
Que bem soam à noite os namorados,
P’ra quem os ouve fazem suave música!

JULIETA:
Romeu!

ROMEU:
Avezinha?

JULIETA:
A que horas, amanhã, te envio alguém?

ROMEU:
Quando soarem as nove.

JULIETA:
Cumprirei: são vinte anos até lá.
Mas que outra coisa eu vinha te dizer?

ROMEU:
Até te recordares fico aqui.

JULIETA:
Só me recordarei de como gosto
Da tua companhia, fica então.

ROMEU:
Não hás de ter nenhuma outra lembrança,
Nem eu hei de ter poiso senão este.

JULIETA:
Sendo quase manhã, quero que partas:
Não mais, porém, que a ave do garoto
Que a deixa voar um pouco da sua mão,
Prisioneira em grilheta retorcida,
E com fio de seda a traz de volta
Da liberdade até ao seu ciúme.

ROMEU:
Fosse eu essa tua ave.

JULIETA:
Digo o mesmo:
Mas ser-te-ia letal tanto cuidado.
Boa noite! É dor tão doce o ir’s embora,
Que eu direi boa noite até à aurora.                           [Sai, por cima]

ROMEU:
More sono em teus olhos, paz no peito!
Fosse eu tal sono e paz nesse teu leito!


William Shakespeare

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Soneto

Presa – a bolha
no espírito do nível,
criatura dividida;
e a agulha da bússola
oscilando e hesitando,
indefinida.
Solto – o mercúrio
do termómetro quebrado
fugindo à pressa;
e o pássaro-íris
do estreito bisel
do espelho sem ninguém,
voando p’ra qualquer sentido
da palavra “gay”!


Elizabeth Bishop

Uma Arte

Na arte de perder não custa ter mão;
tantas coisas já trazem na sua mente
a perda que o perdê-las não é aflição.

Perde algo cada dia. Aceita a agitação
da chave omissa, da hora que nada acrescente.
Na arte de perder não custa ter mão.

Põe pressa e põe distância na ambição:
perde um lugar, um nome, um destino pendente
de viagem. Nada disso trará aflição.

Não sei do relógio da minha mãe. E tão-
-pouco impedi que uma das casas se perdesse.
Na arte de que falo não custa ter mão.

Perdi duas belas cidades. E, noutro escalão,
reinos que eu tinha, dois rios, um continente.
Fazem-me falta, mas não foi uma aflição.

Mesmo o perder-te (a voz jocosa, uma expressão
que eu amo) não me desdirá. É evidente
que na arte de perder não custa muito ter mão
mesmo se ela for como (Escreve-o!) uma aflição.


Elizabeth Bishop

terça-feira, 6 de setembro de 2016

Sextina

A chuva de setembro cai sobre a casa,
fraqueja a luz. A velha avó
está sentada na cozinha com a criança
junto à oitava maravilha de um fogão.
Lê as anedotas do almanaque,
ri e fala para esconder as lágrimas,

julgando que o equinócio dessas lágrimas
e a chuva que bate no telhado da casa
foram ambos previstos pelo almanaque,
ainda que só fossem sabidos de uma avó.
A chaleira de ferro canta no fogão.
Ela corta pão e diz à criança,

Está na hora do chá; mas a criança
está de olhos postos na chaleira, nas duras lágrimas
que dançam como loucas no calor negro do fogão
exatamente como a chuva dança sobre a casa.
No afã de arrumar, a velha avó
pendura a inteligência do almanaque

na sua corda. Parece um pássaro, o almanaque,
pairando semiaberto sobre a criança,
pairando sobre a velha avó
e a sua chávena turvada de lágrimas.
Ela arrepia-se e diz que a casa
lhe parece fria, e põe mais lenha no fogão.

Era para ser, diz o fogão.
Sei o que sei, diz o almanaque.
Após ter posto mais firmeza na casa
que no caminho para lá chegar, a criança
acrescenta um homem com botões como lágrimas
e, orgulhosa, mostra o desenho à avó.

Secretamente, contudo, enquanto a avó
está atarefada em roda do fogão,
as pequenas luas caem como lágrimas
de dentro das páginas do almanaque
para dentro do canteiro de flores que a criança
colocara com primor em frente da casa.

É tempo de plantar lágrimas, diz o almanaque.
A avó canta para a maravilha do fogão
e a criança volta a desenhar uma inescrutável casa.


Elizabeth Bishop

O peixe

Apanhei um peixe tremendo
e ergui-o junto ao barco
metade fora da água, com o anzol
fixo num canto da sua boca.
O peixe não lutou.
Nem tinha lutado nada.
Só o seu peso gemia,
maltratado e venerando
e tosco. Aqui e ali
pedaços da sua pele pendiam
como velho papel de parede,
e o seu padrão de castanho mais escuro
era mesmo como papel de parede:
formas de rosas abertas
que o tempo tinha sujado e desbotado.
Estava crivado de cracas,
de delicadas rosetas de cal,
e infestado de piolhinhos brancos,
e por baixo pendiam
dois ou três farrapos de alga verde.
Enquanto as suas guelras inspiravam
o terrível oxigénio
– as guelras assustadoras,
estaladiças e frescas de sangue,
que podem fazer cortes tão dolorosos –
lembrei-me da sua carne branca
grosseira como penas em lata,
das grandes e pequenas espinhas,
dos negros e vermelhos dramáticos
das suas entranhas luzidias,
e da bexiga natatória cor-de-rosa
como uma grande peónia.
Olhei para os seus olhos
que eram bem maiores que os meus
mas mais profundos, e amarelecidos,
com as íris recuadas e como que embaladas
em papel de alumínio manchado
vistas através de umas lentes
feitas em cola de peixe já gasta.
Mexeram-se um pouco, mas não
para responder ao meu olhar fixo.
– Foi mais como o inclinar
de um objeto na direção da luz.
Admirei a sua face carrancuda,
o mecanismo do maxilar,
o que me levou a reparar
que do seu lábio inferior
– se àquilo se podia chamar lábio –
sinistro, húmido, bélico,
pendiam cinco velhos pedaços de linha de pesca,
ou quatro e uma sediela
trazendo o destorcedor ainda preso,
com todos os seus grandes anzóis
firmemente espetados na boca.
Uma linha verde, puída na extremidade
em que fora cortada, duas linhas mais pesadas,
e um delgado fio negro
ainda encrespado da tensão que o rompera
e deixara o peixe fugir.
Como medalhas com as suas fitas
puídas e trémulas,
uma barba de cinco pelos de sabedoria
arrastando-se desde o maxilar dorido.
Olhei e voltei a olhar
e uma vitória encheu até à borda
o barquinho que eu alugara,
desde o charco de imundície no porão
onde o óleo tinha espalhado um arco-íris
em torno do motor enferrujado
até ao laranja enferrujado do balde,
aos bancos rachados pela exposição ao sol,
aos toletes nas suas cordas,
aos limites do barco – até tudo ser
arco-da-aliança, arco-da-aliança, arco-da-aliança!
E eu deixei o peixe ir à confiança.


Elizabeth Bishop