tag:blogger.com,1999:blog-83437215796357275242024-03-28T20:28:48.743-07:00Para uso e fruto da língua portuguesaPedro Ludgerohttp://www.blogger.com/profile/00589474142401671272noreply@blogger.comBlogger97125tag:blogger.com,1999:blog-8343721579635727524.post-6511749353941799072023-09-13T05:03:00.012-07:002023-09-20T15:27:28.569-07:00Barba-Azul<div style="text-align: justify;"><div style="text-align: left;"><div>Abriste a porta, era essa a interdição;</div><div>Entra, pois, vê por qual futilidade</div><div>Te engano... Aqui não há um caldeirão,</div><div>Um tesouro, um espelho onde a verdade</div><div>Cara está, nada te há de arrepiar,</div><div>Não há cadáver's de mulher's com manha,</div><div>Apenas o que vês... Mas volta a olhar –</div><div>Um quarto que só tem teias de aranha.</div><div><div>Da vida foi só isto o que escondi,</div><div>Não fosse alguém saber-me por completo;</div><div>Tanta profanação então senti</div><div>Co' a tomada do meu quarto secreto</div><div>Que o teu rosto não mais contemplarei.</div><div>Fica co' isto. Para outro lado irei.</div></div></div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><i><span style="font-family: courier;">Edna St. Vincent Millay</span></i></div></div>Pedro Ludgerohttp://www.blogger.com/profile/00589474142401671272noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8343721579635727524.post-12539009784294995042023-09-08T11:28:00.000-07:002023-09-08T11:28:28.627-07:00Nota 11<div style="text-align: justify;">Embora regularmente leia textos escritos em inglês, francês ou castelhano, tenho de assumir (desde logo para mim mesmo) que aquelas frases, aqueles versos, que, no dizer de Kafka, <i>quebraram o meu mar de gelo como se fossem machados,</i> estavam escritos em português. Não eram necessariamente assinados por autores de língua portuguesa, mas estavam escritos nessa língua.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O meu papel como tradutor nada tem a ver com uma especial competência de decifração. Não domino nenhuma língua estrangeira de forma assim tão exemplar. Traduzo porque, a despeito do meu compromisso de fidelidade a um texto inglês ou francês, quero senti-lo como "texto" (como literatura) na minha própria língua. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Nesta fase da minha vida em que já não consigo escrever poesia em meu nome (e, como o Cesariny, não luto contra isso), as minhas traduções são partilhadas com o sonho de poderem, talvez, para alguém, funcionar como atentados de comoção verbal.</div>Pedro Ludgerohttp://www.blogger.com/profile/00589474142401671272noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8343721579635727524.post-12511634665869021812023-09-07T06:27:00.004-07:002023-09-08T11:11:23.322-07:00Spleen<div style="text-align: left;"><div style="text-align: justify;"><div>Sou tal e qual o rei de um país pluvioso,</div><div>Rico, mas sem poder, jovem, porém idoso,</div><div>Que, p'las vénias dos aios mostrando desdém,</div><div>Com nenhum animal (nem com cães) se entretém.</div><div>Qualquer caça, falcão, não se alegra com nada,</div><div>Nem com povo a morrer diante da sacada.</div><div>Do bobo favorito a balada risível</div><div>Já não distrai o rosto do enfermo terrível;</div><div>Parece adorno em tumba a flor-de-lis do leito,</div><div>E às camareiras que acham todo o rei perfeito</div><div>Não lhes vale o impudor no modo de vestir</div><div>P'ra o jovem esqueleto fazerem sorrir.</div><div>Jamais o sábio que ouro faz terá logrado</div><div>De seu ser extirpar o elemento viciado,</div><div>E nos banhos de sangue herdados dos Romanos,</div><div>Dos quais se lembra o nobre quando entrado em anos,</div><div>Não soube reanimar esse pasmo que morre</div><div>E onde em lugar de sangue um verde Lete corre.</div></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><i><span style="font-family: courier;">Charles Baudelaire</span></i></div></div>Pedro Ludgerohttp://www.blogger.com/profile/00589474142401671272noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8343721579635727524.post-29432658657228355022023-08-27T07:02:00.010-07:002023-08-30T04:14:00.738-07:00Elevação<div style="text-align: left;"><div style="text-align: justify;"><div>Acima das florestas, acima dos mares,</div><div>De vales e montanhas, nuvens, pantanais,</div><div>Muito p'ra além do sol, dos éter's celestiais,</div><div>Para além dos confins de esferas estelares,</div><div><br /></div><div>Meu espírito, aí te apressas a mover,</div><div>E, como quem numa onda encontra a comoção, </div><div>Sulcas alegremente a funda imensidão</div><div>Com o mais indizível e viril prazer.</div><div><br /></div><div>Contra os mórbidos miasmas eleva o teu passo;</div><div>Faz purificação no ar que é superior,</div><div>E bebe, como um puro e divino licor,</div><div>O fogo claro enchendo a limpidez do espaço.</div><div><br /></div><div>Por trás dos dissabores, dos desgostos plenos</div><div>Que pesam por demais na existência brumosa,</div><div>Feliz daquel' que tem uma asa vigorosa</div><div>P'ra se lançar aos campos claros e serenos;</div><div><br /></div><div>Aquel' cujas ideias são livres e aladas,</div><div>Cotovias rumando aos céus de uma manhã,</div><div>– Quem paira sobre a vida e entende sem afã</div><div>A linguagem das flor's e das coisas caladas!</div></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><i><span style="font-family: courier;">Charles Baudelaire</span></i></div></div>Pedro Ludgerohttp://www.blogger.com/profile/00589474142401671272noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8343721579635727524.post-79216639585411563122023-08-26T07:53:00.003-07:002023-08-27T07:05:22.825-07:00O Heautontimorumenos<div style="text-align: left;"><div>Sem cólera te hei de bater,</div><div>Como um talhante, sem ser mau,</div><div>Como Moisés ao seu calhau!</div><div>Da pálpebra farei verter,</div><div><br /></div><div>P'ra dar de beber ao meu Sara,</div><div><div>As águas da tua tristeza.</div><div>Minha ânsia enfunada em certeza</div></div><div>Nadará no sal dessa cara,</div><div><br /></div><div>Barco que se afasta no pranto,</div><div>E, inebriando o meu coração, </div><div>Teus gemidos retumbarão</div><div>Qual tambor que do ataque é canto!</div><div><br /></div><div>Não sou eu dissonante acorde</div><div>Numa divina sinfonia,</div><div>Graças à voraz Ironia</div><div>Que me sacode e que me morde?</div><div><br /></div><div><div>'Stá na minha voz, a chorosa!</div><div>Meu sangue é o tóxico negror!</div><div>Eu sou o espelho aterrador</div><div>Onde se contempla a maldosa.</div><div><br /></div><div>Sou roda e os membros que subjugo!</div><div>Sou tanto face como estalo!</div><div>Fico ferido e apunhalo,</div><div>Sou vítima e também verdugo!</div><div><br /></div><div>Sou vampiro a se autonutrir,</div><div>– Um desses grandes enjeitados</div><div>Ao riso eterno condenados,</div><div>E que não podem mais sorrir!</div></div></div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span style="font-family: courier;"><i>Charles Baudelaire</i></span></div>Pedro Ludgerohttp://www.blogger.com/profile/00589474142401671272noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8343721579635727524.post-11649840642757650062023-08-19T10:40:00.002-07:002023-08-20T05:57:00.856-07:00"Tudo, não é: o amor não alimenta"<div style="text-align: left;"><div>Tudo, não é: o amor não alimenta,</div><div>Não é sono nem teto contra a chuva;</div><div>Nem mastro para quem, numa tormenta,</div><div>Se afunda e vem à tona e logo afunda;</div><div>O amor ao pulmão 'spesso não traz ar,</div><div>Nem limpa o sangue, nem um osso cura;</div><div>E andam tantos a morte a cativar</div><div>Só porque amor em falta traz tortura!</div><div>Pode ser que, numa hora de aflição, </div><div>Gemendo para ser da dor liberta,</div><div>Incapaz de acudir à privação,</div><div>Bem tentadora me pareça a oferta</div><div>De trocar teu amor por pão ou paz.</div><div>Pode ser. Mas não me acho assim capaz.</div></div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><i><span style="font-family: courier;">Edna St. Vincent Millay</span></i></div><p><br /></p>Pedro Ludgerohttp://www.blogger.com/profile/00589474142401671272noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8343721579635727524.post-29854267006674713102023-08-08T05:48:00.010-07:002023-08-09T10:42:38.026-07:00De profundis clamavi<div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit;"><span>A Ti, única amada, peço compaixão,<br /></span><span>Desde o abismo onde o peito caiu bem no fundo.<br /></span><span>Com seu plúmbeo horizonte, é um tépido mundo<br /></span><span>No qual à noite nadam blasfémia, aversão;</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit;"><span><br /></span><span>Em seis dos meses paira um sol já sem calor,<br /></span><span>E a noite cobre o chão p'ra o ano completar;<br /></span><span>É domínio mais nu do que a região polar;<br /></span><span>– Nem animais, nem rios, nem qualquer verdor!</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit;"><span><br /></span><span>Ora, em nenhures há nada mais horroroso<br /></span><span>Do que esse sol de gelo e seu frio impiedoso,<br /></span><span>Do que essa imensa noite, Caos imemorial;</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit;"><span><br /></span><span>Eu invejo a fortuna de um vil animal</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit;">Que pode mergulhar num sono aparvalhado,</span></div><div style="text-align: justify;">Tão lento é o desfazer do tempo enovelado!</div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: Times New Roman, serif;"><br /></span></div><div style="text-align: justify;"><i><span style="font-family: courier;">Charles Baudelaire</span></i></div>Pedro Ludgerohttp://www.blogger.com/profile/00589474142401671272noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8343721579635727524.post-39081900746848537192023-07-27T07:56:00.002-07:002023-07-27T07:56:42.197-07:00A gigante<div style="text-align: left;"><div>No tempo em que a Natura em seu estro pujante</div><div>Gerava a cada dia um rebento monstruoso,</div><div>Faria vida aos pés de uma jovem gigante,</div><div>Como à rainha faz seu gato voluptuoso.</div><div><br /></div><div>Gostaria de a ver de alma e corpo a brotar,</div><div>A crescer sem travão num recreio horroroso;</div><div>De perceber na névoa que lhe embebe o olhar</div><div>Se seu coração choca um fogo tenebroso;</div><div><br /></div><div><div>De com calma cruzar seus faustos multiformes;</div><div>De rastejar na encosta dos joelhos enormes,</div><div>E por vezes no estio, quando sóis suspeitos</div><div><br /></div><div>A fazem, enfadada, estender-se na terra,</div><div>Dormir languidamente à sombra dos seus peitos,</div><div>Como um quedo povoado no pé de uma serra.</div></div></div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span style="font-family: courier;"><i>Charles Baudelaire</i></span></div>Pedro Ludgerohttp://www.blogger.com/profile/00589474142401671272noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8343721579635727524.post-318260896337906542023-07-12T07:28:00.001-07:002023-07-12T07:29:35.052-07:00A negação de São Pedro <div>Que faz Deus dos anátemas que numa enchente</div><div>Sobem todos os dias até seus anjinhos?</div><div>Qual tirano enfartado com carne e com vinhos,</div><div>O chinfrim das blasfémias só o põe dormente.</div><div><br /></div><div>Os soluços dos mártir's, dos supliciados,</div><div>São uma sinfonia inebriante, é forçoso,</div><div>Pois, apesar do sangue que implica esse gozo,</div><div>Dele os céus não se sentem ainda saciados!</div><div><br /></div><div><div>– Ao Jardim de Oliveiras, ah! Jesus, retorna!</div><div>Rezavas de joelhos com teus simples modos</div><div>A quem no céu se ria dos pregos ruidosos</div><div>Que o vil algoz cravava em tua carne morna, </div><div><br /></div><div>Quando viste escarrar na tua divindade</div><div>A escória dos lacaios e dos soldadinhos,</div><div>E quando em ti sentiste entrarem os espinhos</div><div>No crânio onde vivia a imensa Humanidade; </div><div><br /></div><div>Quando o peso cruel do corpo descomposto</div><div>Esticava em excesso os braços, e teu suor</div><div>E teu sangue escorriam na testa sem cor,</div><div>Quando foste ante todos como um alvo exposto,</div></div><div><br /></div><div><div>Sonhavas com os dias, fartos em fulgores,</div><div>Em que vieste cumprir a promessa imortal,</div><div>E andaste, sobre o dorso de um doce animal,</div><div>Por caminhos juncados de ramos e flores,</div><div><br /></div><div>Em que, de alma tão cheia de ousada esperança,</div><div>P'ra açoitar vendilhões não poupaste energia,</div><div>Em que foste enfim mestre? O remorso teria</div><div>Penetrado o teu flanco muito antes da lança?</div><div><br /></div><div>– Quanto a mim, sairei, pois, com satisfação </div><div>De um mundo onde sonhar não é irmão de agir;</div><div>Pudesse eu pelo gládio viver e partir!</div><div>São Pedro renegou Jesus... teve razão!</div></div><div><br /></div><div><i><span style="font-family: courier;">Charles Baudelaire </span></i></div>Pedro Ludgerohttp://www.blogger.com/profile/00589474142401671272noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8343721579635727524.post-25376118623694444722023-06-24T09:53:00.003-07:002023-06-24T09:59:40.482-07:00O Amor e o Crânio <div style="text-align: justify;"><i>Velha vinheta traseira</i></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No crânio da Humanidade</div><div style="text-align: justify;"> 'stá sentado o Amor,</div><div style="text-align: justify;">E o profano, em tal majestade,</div><div style="text-align: justify;"> Rindo sem pudor,</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Sopra, co' esse humor nada sério,</div><div style="text-align: justify;"> Bolhinhas para o ar,</div><div style="text-align: justify;">Como se ao mais fundo do etéreo</div><div style="text-align: justify;"> As pudesse dar.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Globos brilhantes, delicados,</div><div style="text-align: justify;"> Rompendo após voo,</div><div style="text-align: justify;">Cuspindo espíritos delgados</div><div style="text-align: justify;"> Como sonhos de ouro.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O crânio vai erguendo a voz,</div><div style="text-align: justify;"> Implorando assim:</div><div style="text-align: justify;">- "Tal jogo risível, feroz,</div><div style="text-align: justify;"> Quando terá fim?</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Pois o que essa boca temida</div><div style="text-align: justify;"> P'ra o ar arremessa</div><div style="text-align: justify;">É o meu sangue, ó monstro homicida,</div><div style="text-align: justify;"> É carne e cabeça!"</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: courier;"><i>Charles Baudelaire </i></span></div>Pedro Ludgerohttp://www.blogger.com/profile/00589474142401671272noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8343721579635727524.post-62547209808278509882023-06-17T08:28:00.002-07:002023-07-12T07:29:49.158-07:00A uma mulher que passou<div style="text-align: left;"><div>Uivava em meu redor a rua em confusão. </div><div>Longa, esguia, enlutada com dor majestosa,</div><div>Uma mulher passou, com uma mão faustosa</div><div>Alçando, balançando a bainha, o festão;</div><div><br /></div><div>Ágil e nobre, com a perna de uma estátua.</div><div>Eu bebia, em tensão como quem desatina,</div><div>No seu olho, céu plúmbeo onde o tufão germina,</div><div>A doçura que enleva e o prazer que mata.</div><div><br /></div><div>Um clarão... logo a noite! - Ó tão fugaz beldade</div><div>Cujo olhar de repente me fez rebrotar,</div><div>O nosso reencontro é só na eternidade?</div><div><br /></div><div>Algures, longe! tarde! ou <i>nunca</i>, se calhar!</div><div>Não sei p'ra onde fugiste, nem tu meu caminho,</div><div>Ó tu que adivinhaste meu virtual carinho!</div></div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><i><span style="font-family: courier;">Charles Baudelaire </span></i></div>Pedro Ludgerohttp://www.blogger.com/profile/00589474142401671272noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8343721579635727524.post-82134737268505418032023-06-04T07:49:00.001-07:002023-06-04T07:56:40.165-07:00O cisne<div style="text-align: left;"><div><i>A Victor Hugo</i></div><div><br /></div><div>I</div><div>Ó Andrómaca, penso em vós! Esse ribeiro,</div><div>Espelho humilde e triste onde outrora luzia</div><div>O mal da viuvez com esplendor cimeiro,</div><div>Simoente fingidor que o vosso pranto enchia,</div><div><br /></div><div>Fecundou-me a memória com agilidade,</div><div>Quando ia a atravessar o Carrossel atual.</div><div>Paris é um lugar novo (a forma da cidade</div><div>Muda mais rápido, ai! que um coração mortal);</div><div><br /></div><div><div>Já só na mente vejo esse campo de choças,</div><div>De fustes, capitéis que a confusão mal traça,</div><div>E a relva, as pedras que a água esverdeia nas poças,</div><div>O caos do bricabraque a luzir na vidraça.</div><div><br /></div><div>Ali, já houve bichos em exposição;</div><div>Ali, um dia, vi, na hora em que sob o céu</div><div>Frio e claro o Trabalho acorda, e o furacão</div><div>Sombrio dos lixeiros provoca escarcéu,</div></div><div><br /></div><div><div>Um cisne que pudera da jaula escapar,</div><div>E cuja alva plumagem as patas palmadas</div><div>Arrastavam no solo seco e irregular.</div><div>O bicho abrindo o bico num rio sem águas</div><div><br /></div><div>Banhava na poeira as asas a tremer,</div><div>E dizia (alma posta no lago natal):</div><div>"Serás, raio, trovão? quando, água, hás de chover?"</div><div>Vejo 'inda esse infeliz, mito estranho e fatal,</div><div><br /></div><div>Tal qual o homem de Ovídio, para o céu erguendo,</div><div>Esse irónico céu, todo azul agressor,</div><div>A cabeça voraz num pescoço tremendo,</div><div>Como se repreendesse o próprio Criador!</div><div><br /></div><div><br /></div><div><div>II</div><div>Muda Paris! o mesmo da melancolia</div><div>Não digo! andaimes, pedras, recentes mansões,</div><div>Velhos bairros, de tudo faço alegoria,</div><div>Mais do que as rochas pesam as recordações. </div><div><br /></div><div>Assim diante do Louvre uma imagem me oprime:</div><div>Penso no grande cisne, agindo a contrassenso,</div><div>Tal qual os exilados, risível, sublime,</div><div>Remoendo um desejo sem pausa, e em vós penso,</div></div></div><div><br /></div><div><div>Andrómaca, de braços de esposo tombada,</div><div>Vil gado, pela mão que em Pirro é orgulhosa,</div><div>Sobre a tumba vazia em êxtase curvada;</div><div>Viúva de Heitor, ai! mas de Heleno a esposa!</div><div><br /></div><div>Penso na esguia preta, de tísica doente,</div><div>Patinando na lama, o olho aberto exigindo</div><div>Os coqueiros perdidos da África esplendente</div><div>Logo atrás da muralha do nevoeiro infindo;</div></div><div><br /></div><div><div>Em quem tenha perdido o que nunca, mas nunca</div><div>Reaverá! em quem do pranto é bebedor,</div><div>Mamando em sua Dor como em loba oportuna!</div><div>No órfão magro secando tal qual uma flor!</div><div><br /></div><div>P'la floresta onde está meu pensar exilado,</div><div>Uma lembrança soa em trombeta estridente!</div><div>Penso no homem do mar numa ilha deixado,</div><div>Nos presos, nos vencidos!... em muito mais gente!</div></div></div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><i><span style="font-family: courier;">Charles Baudelaire</span></i></div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><br /></div>Pedro Ludgerohttp://www.blogger.com/profile/00589474142401671272noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8343721579635727524.post-91461979593216078312023-04-22T08:40:00.002-07:002023-04-22T16:03:18.701-07:00Paisagem<div style="text-align: left;"><div>Quero, para compor pastorais com pureza,</div><div>Dormir perto do céu que o astrólogo preza,</div><div>E, enquanto sonho, ouvir os majestosos hinos</div><div>Que o vento faz chegar dos mais próximos sinos.</div><div>Queixo assente nas mãos, desde as águas-furtadas</div><div>Verei as oficinas p'la voz animadas;</div><div>Verei canos e torres (mastros da cidade),</div><div>E os grandes céus que apelam para a eternidade.</div><div><br /></div><div>É tão bom, através das brumas, ver a estrela</div><div>Nascer em pleno azul, acender-se a janela,</div><div>O rio de carvão subir ao firmamento</div><div>E a lua derramar seu frouxo encantamento.</div><div>Verei as estações que passam rigorosas;</div><div>Mas, o inverno chegando com neves tediosas,</div><div>Cortinas e portadas terei de fechar</div><div>P'ra meu paço irreal na noite edificar.</div><div>Então eu sonharei com azuis horizontes,</div><div>Com jardins, e alabastros onde choram fontes,</div><div>Com beijos, e com aves cantando sem pausa,</div><div>Com tudo o que do Idílio na infância tem causa.</div><div>O Motim, na janela trovejando em vão,</div><div>Não me há de desviar do papel a atenção;</div><div>Pois estarei submerso no imenso prazer</div><div>De chamar Primaveras sempre que quiser,</div><div>De arrancar ao meu peito um sol, de reduzir</div><div>O furor que há na mente a uma brisa a fluir.</div></div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><i><span style="font-family: courier;">Charles Baudelaire</span></i></div>Pedro Ludgerohttp://www.blogger.com/profile/00589474142401671272noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8343721579635727524.post-87056361127156928422022-08-02T13:32:00.003-07:002023-06-21T06:09:16.245-07:00Um cunquate para John Keats<div style="text-align: left;"><div style="text-align: justify;"><div>Meu auge já tem fruto que o exprima,</div><div>não é laranja, tângera, ou lima,</div><div>nem toranja lunar em suspensão </div><div>fora do quarto, nem ruim limão</div><div>(embora o ano passado, todo agrura,</div><div>me tornasse descrente da doçura)</div><div>nem o tangível sol da tangerina,</div><div>nem outra insensatez de ordem citrina</div><div>que, em Newcastle ou Leeds, com nome errado</div><div>se venda junto ao nabo enlameado,</div><div>fruto que alguém mais velho oporia</div><div>à uva onde John Keats viu Alegria, </div><div>quando, dois anos antes de morrer,</div><div>sediou Melancolia no Prazer,</div><div>e se el' tivesse achado a fruta minha,</div><div>que não é limão, lima, ou tangerina, </div><div>mesmo tendo-lhe sido anunciada</div><div>"a ameixa ou a maçã cristalizada"</div><div><div>em vez de "uva em palato requintado"</div><div>do meu fruto oriental seria aliado,</div><div>se mal tem o tamanho da cereja</div><div>p'ra haver apóstrofe uma trinca chega,</div><div>e trovaria Keats que o seu sabor</div><div>de antes da Queda retirava o teor,</div><div>p'ra logo descrever, no poema seu,</div><div>o que à segunda trinca Eva aprendeu,</div></div><div><div>e se mais tempo ele tivesse tido</div><div>para ficar como eu meio perdido,</div><div>com quarenta e dois anos igualmente </div><div>louvaria o cunquate que o meu dente</div><div>trincou, em Micanopy, sem saber</div><div>onde o doce e o amargo nel' deter.</div><div>Muito cunquate desde então provei,</div><div>se é doce dentro ou fora 'inda não sei,</div><div>e assim, na meia-idade, em confusão, </div><div>perguntaria a Keats a opinião:</div><div>Tem casca e polpa o fruto que te trouxe,</div><div>qual delas é amarga, qual é doce?</div></div><div>Onde acaba o amargor ou se inicia?</div><div>Não sei quando é que a noite se faz dia. </div><div><div>Como um todo, este fruto é para mim</div><div>metáfora que à alma é mais afim </div><div>de um quarentão com Keats que na Florida</div><div>do cunquate conclui, quando mastiga</div><div>sua pele ou pevide ou seu recheio,</div><div>que a tal deve saber um viver cheio,</div><div>picada a língua por prazer fugaz</div><div>se sorve a vida quem não é rapaz,</div><div>já longe estando os frutos do porvir.</div><div>Os dias têm uma casca escura,</div><div>o cunquate foi feito p'ra exprimir</div><div>como a morte é a pele da doçura.</div></div><div><br /></div><div><div>Paixão, razão, história, todas vivas,</div><div>são vaivém nas papilas gustativas.</div><div>O tempo que p'ra além de Keats durei</div><div>fez-me mais velho, e ademais só sei</div><div>que é tarde p'ra morrer com juventude, </div><div>mas se esta a todo o gozo não alude,</div><div>tenho cunquat's e dias p'ra exprimir</div><div>o Nada que amadura o Existir.</div><div>São dezasseis os anos que a mais trago,</div><div>maior safra de sonho, medo e estrago,</div><div>mas também houve a história a decorrer</div><div>entre a morte de Keats e o meu nascer -</div></div><div><div>um século de horror, cratera atenta</div><div>com todo o mal da ebulição sangrenta;</div><div>não maior que uma urna, a coisa explode,</div><div>arrebata o silêncio, toda a ode,</div><div>com ar imundo é sufocada a Flora,</div><div>ar que ninguém exp'rimentara outrora,</div><div>Náiades secas, Dríades cortadas</div><div>rastejam por paisagens devastadas,</div><div>sangue de Nesso abrasa quem da idade</div><div>do moribundo Keats só tem metade...</div></div><div><br /></div><div><div>Não sei se vinte e seis anos eu conte</div><div>quando gelou a febre em tua fronte...</div><div>Não tenho à mão um livro onde isso veja.</div><div>Meu agridoce espírito festeja</div><div>o facto de só ter cunquat's à mão,</div><div>sobre eles não sei tua opinião, </div><div>mas não se dá a um morto fruta ou vinho,</div><div>apenas de Prosérpina o carinho,</div><div>Fanny Brawn' já teu leito não aquece,</div><div><div>nem jamais a verás, quando amanhece,</div><div>colhendo uma toranja, como eu pude</div><div>ver seu bronzeado pulso, co' atitude,</div><div>tirar do caule a lua que dá brilho</div><div>p'ra quem ronda o paul do crocodilo.</div><div>Parecia acabado de inventar,</div><div>tal um julepo de sabor lunar,</div><div>esse astro que a satélites reduz</div><div>os citrinos por entre os quais reluz.</div></div></div><div><br /></div><div><div>Vejo à tardinha, enquanto fecho a casa,</div><div>que astros se espremem p'la noturna casca;</div><div>liberto desta, o sol, dos raios sumo,</div><div>com dias mancha, risca, inunda o mundo,</div><div>dias, em que a luz basta p'ra chorar,</div><div>e os fármacos impedem o acordar,</div><div>em Newcastle, a filha numa cama,</div><div>parecendo que a morte nos reclama,</div><div>em Leeds, o fato escuro sendo estreado,</div><div>Natal com funeral da mãe ao lado,</div><div>dias, como este em Micanopy. Dias!</div></div><div><br /></div><div><div>Nascendo, o sol desfaz brumas sombrias,</div><div>colho um cunquate e um ramo me rocia,</div><div>frescura que no rosto enceta o dia.</div><div>Os melaços do alvor dão aos citrinos</div><div>o brilho quieto dos vergéis dormidos.</div><div>Como Galway chovida com fartura, </div><div>as limas quase doem de verdura,</div><div>fruta fresca de orvalho que ergueu</div><div>toda a noite o seu brilho em pleno céu.</div><div><div>Desponta o dia. Oh dias! Vou saudar</div><div>o cunquate e John Keats vai secundar.</div><div>Ó consolo agridoce por ainda</div><div>manter vida, abençoa ao poeta a língua!</div><div>Devoro inteiro o fruto matinal.</div><div>P'ra quarenta e dois anos, nada mal! </div><div><br /></div><div>Clareando o dia, os bútios logo vi</div><div>pairando na frescura do ar que sobe.</div><div>Seus guinchos tristes foram o que ouvi</div><div>quando saí de casa de manhã,</div><div>e o Fowler que, afiando o seu serrote,</div><div>soava à nossa cama em pleno afã.</div></div></div><div><br /></div></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><i><span style="font-family: courier;">Tony Harrison</span></i></div></div>Pedro Ludgerohttp://www.blogger.com/profile/00589474142401671272noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8343721579635727524.post-58251559846638373352022-08-02T13:32:00.000-07:002022-08-02T13:32:28.503-07:00Nota Dez<p style="text-align: justify;">O poema "Um cunquate para John Keats" está metricamente organizado em pentâmetro, embora em muitos momentos a contagem dos seus pés se revele bastante dúbia. Para evitar os escolhos da procura de equivalências entre dois sistemas métricos tão diversos como o inglês e o português, optei por me manter fiel ao decassílabo ao longo de toda a tradução.</p>Pedro Ludgerohttp://www.blogger.com/profile/00589474142401671272noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8343721579635727524.post-36861786042259196132022-06-24T10:22:00.006-07:002022-06-24T14:05:31.011-07:00Nota Nove<div style="text-align: justify;">Diria que a maior influência que tive como tradutor veio, não da poesia em si, mas da música. Muito em concreto, da música de Mozart.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Quando carrego um texto da margem de uma língua para a margem de outra, tento que o material que sobreviveu à turbulência babélica do rio não tenha perdido os níveis de clareza e simplicidade que tinha na origem.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Pode o material chegar levemente tingido, pode a sua forma ter-se tornado mais análoga do que idêntica, etc., mas aquilo que nele era claro, continua claro, e aquilo que nele era simples, continua simples.</div>Pedro Ludgerohttp://www.blogger.com/profile/00589474142401671272noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8343721579635727524.post-46889172344486812542022-06-24T10:08:00.007-07:002022-06-24T14:00:59.791-07:00Nota Oito<div style="text-align: justify;">A convite do escritor catalão Joan Navarro, estou a traduzir o poema "A kumquat for John Keats", do britânico Tony Harrison, para o número de março de 2023 da revista online "sèrieAlfa". O texto só será partilhado neste blogue após a sua publicação na revista.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Constato que, para me ir mantendo fiel ao pentâmetro com que Harrison organizou o seu poema (o que equivale a dez sílabas métricas na versificação em português), vou por vezes eliminando uma ou outra informação que me parece claramente secundária (e que talvez até tenha sido acrescentada ao texto sobretudo para manter a constância do ritmo). Trata-se de uma opção polémica, numa atividade onde tudo é (ou deveria ser!) polémico.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Mas a verdade é que o tipo de traição que pratico (quando exagero, coloco uma etiqueta na tradução dizendo que se trata de uma... "versão") não me parece menor que o daquele tradutor que, para conservar toda a informação semântica do texto original, despreza o ritmo por completo. As questões formais não são o parente pobre de um texto poético.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">É claro que me recuso a omitir informação essencial e que luto para que o texto de chegada seja semanticamente equivalente ao global do texto de partida. Mas, neste jogo de puro malabarismo que é a vontade de traduzir, tento equilibrar ao mesmo tempo no ar o maior número de elementos possível.</div>Pedro Ludgerohttp://www.blogger.com/profile/00589474142401671272noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8343721579635727524.post-3194576727455986792022-03-01T12:11:00.000-08:002022-03-01T12:11:07.095-08:00A uma Madona<div style="text-align: justify;"><span style="font-size: x-small;">Ex-voto à maneira espanhola</span> </div><div style="text-align: left;"><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><div>Quero criar p'ra ti, Madona, minha amante,</div><div>Um altar enterrado na dor dominante,</div><div>E escavar, onde o peito é mais negro e profundo,</div><div>Ao abrigo da troça e cobiça do mundo,</div><div>Um nicho, todo em ouro e azul esmaltado,</div><div>Onde tu te erguerás como Ídolo abismado.</div><div>Co'a malha dos meus Versos, um puro metal</div><div>Polido até rimar estrelas de cristal,</div><div>Tua C'roa farei - será incomparável;</div><div>E com o meu ciúme, ó Madona findável,</div><div>Saberei preparar-te um Manto, coisa feita</div><div>Com dureza e crueldade, forrada a suspeita, </div><div>Que guarita será p'ra encerrar teus encantos;</div><div>Não com Perlas bordado, mas com os meus Prantos!</div><div>Teu vestido será meu Desejo tremendo,</div><div>Ondulando, Desejo subindo e descendo,</div><div>Que nos picos baloiça, nos vales repousa,</div><div>Veste de um beijo só teu corpo branco e rosa. </div><div>Com meu Respeito vou fazer belo Calçado</div><div>De cetim, por teus pés divinos humilhado,</div><div>Mas que, ao trazê-los presos num abraço mole,</div><div>Lhes guardará a forma como fiel molde. </div><div>Se uma Lua de prata não sei fabricar</div><div>Para Degrau, por muito que possa tentar,</div><div>Vou depor a Serpente que entranhas devora</div><div>A teus pés, p'ra que pises, escarnecedora,</div><div>Ó Rainha triunfal, fértil em redenções,</div><div>Tal monstro a abarrotar de escarros e aversões.</div><div>Pensamentos verás, quais Círios, postos diante</div><div>Do altar cheio de flores da Virgem Reinante,</div><div>No teto azul brilhando a fim de o constelar,</div><div>Enquanto te contemplam com fogo no olhar;</div><div>E como nada há que te apouque ante mim,</div><div>Tudo será Incenso, Mirra, Benjoim,</div><div>E sempre para ti, cume branco e nevoso, </div><div>Em Vapor's subirá meu Juízo tormentoso.</div><div><br /></div><div>Por fim, p'ra completar teu papel de Maria,</div><div>E combinar o amor com toda a barbaria,</div><div>Negro gozo! dos Pecados ditos mortais,</div><div>Com remorsos de algoz, farei sete Punhais</div><div>Bem afiados, e, como um artista iracundo,</div><div>Fazendo pontaria ao teu amor profundo,</div><div>Todos hei de cravar em teu Peito ofegante,</div><div>Em teu Peito gritante, em teu Peito jorrante!</div></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><i><span style="font-family: courier;">Charles Baudelaire</span></i></div></div><p style="text-align: left;"><br /></p>Pedro Ludgerohttp://www.blogger.com/profile/00589474142401671272noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8343721579635727524.post-66721958670082072852022-02-13T09:13:00.004-08:002023-07-29T06:34:29.310-07:00O convite à viagem <div style="text-align: left;">Minha irmã, criança,</div><div>Pensa na bonança</div><div>De irmos viver para ali!</div><div>Amar sem correr,</div><div>Amar e morrer</div><div>No país igual a ti!</div><div>Os sóis alagados</div><div>Desses céus toldados</div><div>Têm p'ra mim os encantos</div><div>Tão indefinidos</div><div>Dos olhos fingidos </div><div>Que reluzem nos teus prantos. </div><div><br /></div><div>Lá, tudo é calma e rigor,</div><div>Prazer, beleza, esplendor.</div><div><br /></div><div><div>Só móveis polidos</div><div>P'los tempos volvidos</div><div>Nosso quarto alegrariam;</div><div>As mais raras flores</div><div>Unindo os odores</div><div>Aos que no âmbar se anunciam,</div><div>Tetos carregados,</div><div>Espelhos cavados,</div><div>O requinte oriental,</div><div>Falaria tudo</div><div>Ao 'spírito mudo</div><div>Na doce língua natal.</div><div><br /></div><div>Lá, tudo é calma e rigor,</div><div>Prazer, beleza, esplendor.</div></div><div><br /></div><div><div>Nesses canais, nota</div><div>Que dorme uma frota</div><div>Cujo humor é vagabundo;</div><div>P'ra satisfazer</div><div>Teu menor querer</div><div>Ela vem do fim do mundo.</div></div><div><div>- Os sóis vesperais</div><div>Vestem os canais,</div><div>Os campos, o povoamento,</div><div>Com oiro e zircão;</div><div>Num quente clarão</div><div>Fica o mundo sonolento. </div><div><br /></div><div>Lá, tudo é calma e rigor, </div><div>Prazer, beleza, esplendor.</div></div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span style="font-family: courier;"><i>Charles Baudelaire </i></span></div>Pedro Ludgerohttp://www.blogger.com/profile/00589474142401671272noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8343721579635727524.post-86753339116067388762021-12-24T19:08:00.003-08:002021-12-31T17:00:39.689-08:00Uma carniça<div style="text-align: left;"><div>Lembrai-vos do que vimos, ó alma dileta,</div><div>Nessa manhã de um verão brando:</div><div>No desvio de um trilho, uma carniça abjeta</div><div>Por entre seixos repousando,</div><div><br /></div><div>As pernas para o ar como mulher lasciva</div><div>Que com veneno inflama o suor,</div><div>Abria de uma forma lânguida, ofensiva,</div><div>O seu ventre prenhe de odor.</div><div><br /></div><div>O sol resplandecia para cozinhar</div><div>Com apuro esta podridão, </div><div>Querendo devolver, mas a centuplicar,</div><div>À Natura a sua criação;</div><div><br /></div><div>E a soberba carcaça obtinha o olhar celeste</div><div>Que ao abrir de uma flor é dado.</div><div>Tão forte era o miasma, que quase perdeste</div><div>A consciência nesse relvado.</div><div><br /></div><div>Sobre tal ventre fétido as moscas zumbiam,</div><div>Del' marchavam negras enchentes</div><div>De larvas, que qual líquido espesso escorriam</div><div>Ao longo dos trapos viventes.</div><div><br /></div><div><div>E tudo isso descia, subia qual vaga,</div><div>Numa espumante agitação;</div><div>Como se houvesse vida, uma inspiração vaga,</div><div>No corpo em multiplicação. </div><div><br /></div><div>Esse mundo emitia um canto extravagante, </div><div>Como vento ou água ligeira,</div><div>Como o grão sacudido por ritmo constante</div><div>Ao ser passado na joeira.</div><div><br /></div><div>À maneira de um sonho, a forma se extinguia,</div><div>Esboço insistindo em tardar</div><div>Numa tela esquecida, e que o pintor teria</div><div>De concluir a recordar.</div></div><div><br /></div><div><div>Uma cadela inquieta p'las rochas tapada</div><div>Olhava para nós com ira,</div><div>Esperando a ocasião de ir buscar à ossada</div><div>O naco de que desistira.</div><div><br /></div><div>- Mas haveis de chegar a similar figura,</div><div>Sereis infeção repugnante,</div><div>Astro do meu olhar, sol da minha natura,</div><div>Vós, meu anjo, vós, minha amante!</div><div><br /></div><div>Sim!, haveis de assim ser, vós que em graça reinais,</div><div>No fim do rol de sacramentos,</div><div>Ao irdes, sob a relva e as florações brutais,</div><div>Criar bolor entre ossamentos.</div></div><div><br /></div><div><div>Minha beleza, então, dizei à bicharada</div><div>Que aos beijos vos irá comer,</div><div>Que eu preservei a forma e a essência sagrada</div><div>De meu amor a apodrecer.</div></div><div><br /></div><div><br /></div><div><i><span style="font-family: courier;">Charles Baudelaire</span></i></div></div>Pedro Ludgerohttp://www.blogger.com/profile/00589474142401671272noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8343721579635727524.post-17785184607934750852021-07-10T08:34:00.002-07:002021-07-10T08:41:45.085-07:00Hino à Beleza<div style="text-align: left;">Provéns do céu profundo ou da sua objeção,</div><div>Beleza, se, quando olhas, maldita e sagrada,</div><div>Vertes crime e mercê sem fazer distinção,</div><div>E assim podes ao vinho ficar comparada?</div><div><br /></div><div>Conténs no teu olhar a aurora e o ocaso;</div><div>Teu cheiro é o da noitinha quando tormentosa;</div><div>Teu beijo é uma poção que vem de antigo vaso</div><div>Tornando o herói cobarde e a criança corajosa. </div><div><br /></div><div>Provéns do abismo negro ou de um astro és a graça?</div><div>O Fado as tuas saias segue farejando;</div><div>Espalhas ao acaso alegria e desgraça,</div><div>E respondes por nada, tudo governando.</div><div><br /></div><div>Caminhas sobre corpos mortos e humilhados;</div><div>Tens, entre as tuas joias, o encanto do Horror;</div><div>O Assassínio, um dos teus enfeites mais prezados,</div><div>Sobre o teu ventre ufano dança com amor.</div><div><br /></div><div>O efémero ofuscado voa p'ra ti, vela,</div><div>Se crepita e flameja, ainda louva essa chama!</div><div>O ansioso que se inclina ante uma mulher bela</div><div>Parece um moribundo que seu túmulo ama.</div><div><br /></div><div>Provenhas tu do céu ou do inferno, que importa,</div><div>Beleza, monstro incauto, horrendo, desmedido!</div><div>Se teus olhos, sorrisos, pés, me abrem a porta</div><div>De um Infinito que amo sem ter conhecido?</div><div><br /></div><div>Do Diabo ou de Deus, que importa? Anjo ou Sereia,</div><div>Que importa, se tu és fada de olhar de veludo,</div><div>Ritmo, aroma, clarão, rainha em minha ideia,</div><div>Tirando peso ao tempo e repugnância a tudo?</div><div><br /></div><div><br /></div><div><i><span style="font-family: courier;">Charles Baudelaire</span></i></div>Pedro Ludgerohttp://www.blogger.com/profile/00589474142401671272noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-8343721579635727524.post-5000193856922860902021-06-04T15:14:00.000-07:002021-06-04T15:14:25.831-07:00Correspondências<div style="text-align: left;">No templo Natural, não há vivo pilar</div><div>Que não deixe escapar certa fala confusa;</div><div>Os símbolos dos bosques que todo o homem cruza</div><div>Vão lançando sobre ele um olhar familiar.</div><div><br /></div><div>Como ecos que de longe se fundem em somas</div><div>Compondo uma profunda e medonha unidade,</div><div>Tão vasta como a noite e como a claridade,</div><div>Correspondem-se as cores, os sons e os aromas.</div><div><br /></div><div><div>Pode o aroma ser fresco como o da criança, </div><div>Doce como um oboé, verde como a campina,</div><div>- Ou pode ser corrupto, rico, ter pujança</div><div><br /></div><div>De coisa que se expande e que jamais declina,</div><div>Como o âmbar, o almíscar, o incenso, o benjoim,</div><div>Que cantam os sentidos e a alma em frenesim.</div></div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span style="font-family: courier;"><i>Charles Baudelaire</i></span></div>Pedro Ludgerohttp://www.blogger.com/profile/00589474142401671272noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8343721579635727524.post-23052812189235774942021-05-28T11:21:00.010-07:002021-05-28T11:23:19.299-07:00O albatroz<div style="text-align: left;">Muitas vezes, por gozo, os homens da equipagem<br />Prendem um albatroz, bicho marinho e largo<br />Que usa seguir, parceiro indolente de viagem,<br />O navio que voga pelo abismo amargo.</div><div style="text-align: left;"><br />Mal o põem em cena no palco do chão,<br />Esse rei do Azul, inábil e acanhado,<br />Deixa cair as asas em lamentação,<br />Quais grandes remos brancos que arrasta ao seu lado.</div><div style="text-align: left;"><br />O viajante dos ares perdeu a beleza!<br />Agora só faz rir, quem há pouco encantava!<br />Um mete-lhe no bico um cachimbo que o lesa,<br />Outro imita o defeito de um manco que voava!</div><div style="text-align: left;"><br />Ao príncipe do céu, que do arqueiro se ria<br />E a tormenta assombrava, o Poeta é semelhante;<br />Exilado no solo, em plena zombaria,<br />Impedem-no de andar as asas de gigante.</div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><i><span style="font-family: courier;">Charles Baudelaire</span></i></div>Pedro Ludgerohttp://www.blogger.com/profile/00589474142401671272noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8343721579635727524.post-49578036832095505732021-05-09T05:20:00.003-07:002021-05-12T02:34:12.228-07:00Bênção<div style="text-align: left;"><div>Assim que, por decreto da força suprema,</div><div>Aparece o Poeta no mundo entediado,</div><div>Sua mãe assustada e por demais blasfema,</div><div>Contra o Deus que a lamenta ergue um punho cerrado:</div><div><br /></div><div>– "Ah!, tivesse eu parido um ninho de serpentes,</div><div>Em vez de dar meu leite a toda esta irrisão!</div><div>Maldita seja a noite de amor's transientes </div><div>Em que foi concebida a minha expiação!</div><div><br /></div><div>Se entre as mulheres todas me foste buscar</div><div>P'ra trazer a aversão ao meu triste marido,</div><div>E se nem sequer posso nas chamas lançar,</div><div>Como carta de amor, o monstro diminuído,</div><div><br /></div><div><div>O rancor que me impinges farei recair</div><div>No instrumento votado às Tuas maldições,</div><div>E essa árvore ruim tanto a hei de ferir</div><div>Que jamais crescerão seus fétidos botões!"</div><div><br /></div><div>Engole então a baba que o rancor soltara,</div><div>E, não sabendo ler os desígnios eternos,</div><div>Na Geena profunda ela mesma prepara</div><div>As piras consagradas aos crimes maternos.</div><div><br /></div><div>Mas o Miúdo enjeitado o próprio sol consome</div><div>Sob a guarda invisível do seu Querubim,</div><div>E em tudo o que bebe e em tudo o que come</div><div>Ele encontra a ambrosia e o néctar carmim.</div></div><div><br /></div><div><div>Conversa com a nuvem, brinca com a aragem,</div><div>Embriaga-se, cantando, com a sacra via;</div><div>E o Espírito que o segue na sua romagem</div><div>Chora ao vê-lo, qual ave, cheio de alegria.</div><div><br /></div><div>Os seres que ele estima julgam-no nojento,</div><div>E, colhendo coragem na sua bondade,</div><div>Tentam ver quem consegue arrancar-lhe um lamento</div><div>Para assim se adestrarem na ferocidade.</div><div><br /></div><div>Em todo o vinho e pão que lhe hão de ir ter à boca</div><div>Vão misturando cinza com escarros vis;</div><div>Hipócritas, rejeitam tudo o que ele toca</div><div>E penam se o seu trilho com o del' condiz.</div></div><div><br /></div><div>Nas praças da cidade a sua mulher brama:<br />
"Já que ele mitifica a minha formosura,<br />Levarei o viver que um ídolo reclama,<br />
Com direito ao retoque da antiga pintura;<br />
<!--/data/user/0/com.samsung.android.app.notes/files/clipdata/clipdata_210424_155015_704.sdoc--></div><div><br /></div><div>E hei de me empanturrar de incenso, mirra, nardo,<br />
E de genuflexões, de carnes, de licores,<br />Zombando enquanto roubo ao coração do bardo</div><div>O que é devido a Deus em forma de louvores!<br />
<!--/data/user/0/com.samsung.android.app.notes/files/clipdata/clipdata_210424_163918_673.sdoc--></div><div><br /></div><div>E, quando de ímpias farsas me achar enjoada,</div><div>
Minha mão fraca e forte sobre el' pousarei;<br />
E com unhas de harpia hei de abrir uma estrada<br />
Com que ao seu coração por certo chegarei.</div><div><br /></div><div>Como um pássaro jovem que treme e palpita,<br />
Esse órgão tirarei do vermelho carnal,<br />
E, como quem sacia a besta favorita,<br />
Vou atirar-lho ao chão com desprezo total!"<br />
<!--/data/user/0/com.samsung.android.app.notes/files/clipdata/clipdata_210430_165214_330.sdoc--></div><div><br /></div><div>Para o Céu, onde avista o seu trono imponente,<br />
O Poeta sereno ergue as mãos piedosas<br />
E os profundos clarões de tão lúcida mente<br />
Ocultam-lhe a aparência das turbas furiosas:<br />
<br />
- "Bendito sejais, Deus, que entregais a dolência</div><div>
Como cura divina p'ra os nossos desvios,<br />
Como sendo a mais pura, a mais perfeita essência<br />
Que prepara os robustos p'ra os júbilos pios!<br />
<br />
Há de um dia o Poeta por certo ir subindo<br />
Às filas venturosas das santas Legiões,<br />
E haveis de o convidar para o festejo infindo<br />
Dos Tronos, das Virtudes, das Dominações.<br />
<!--/data/user/0/com.samsung.android.app.notes/files/clipdata/clipdata_210501_165144_387.sdoc--></div><div><br /></div><div>Sei bem quanto é preciso que a vida me doa<br />
P'ra da terra e do inferno exceder o estatuto,<br />
E que para entrançar tal mística coroa<br />A todo o mundo e tempo há que pedir tributo.<br />
<!--/data/user/0/com.samsung.android.app.notes/files/clipdata/clipdata_210507_153313_163.sdoc--></div><div><br /></div><div>Mas as joias perdidas da Palmira antiga,<br />
As pérolas do mar, os metais por saber,<br />
Engastados por Vós, nada há que consiga<br />
Compor um diadema tão claro a esplender;<br />
<!--/data/user/0/com.samsung.android.app.notes/files/clipdata/clipdata_210508_152319_104.sdoc--></div><div><br /></div><div>Só pura luz será sua matéria-prima, <br />
Vinda do santo lar dos primórdios radiosos,<br />
Da qual olhos mortais, no fulgor que os anima,<br />
Não são mais do que espelhos turvos e chorosos!"</div></div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><span style="font-family: courier;"><i>Charles Baudelaire</i></span> </div>Pedro Ludgerohttp://www.blogger.com/profile/00589474142401671272noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8343721579635727524.post-18780362707714614322021-01-03T09:51:00.003-08:002021-01-06T05:16:16.568-08:00Beijando em vietnamita<div style="text-align: left;">A minha avó dá beijos</div><div style="text-align: left;">como se houvesse bombas a rebentar no quintal</div><div style="text-align: left;">onde hortelã e jasmim entrelaçam odores</div><div style="text-align: left;">e os fazem passar pela janela da cozinha,</div><div style="text-align: left;">como se, algures, um corpo estivesse a ruir</div><div style="text-align: left;">e as chamas pudessem regressar</div><div style="text-align: left;">através do emaranhado da coxa de um miúdo,</div><div style="text-align: left;">como se, para transpores uma porta, o teu tronco</div><div style="text-align: left;">tivesse que dançar a dor que as balas fizeram ao sair.</div><div style="text-align: left;">Quando a minha avó dá beijos, nunca</div><div style="text-align: left;">a meiguice é estrepitosa, os lábios não apertam</div><div style="text-align: left;">com música ocidental, ela beija como se quisesse</div><div style="text-align: left;">inalar-te, o nariz comprimido contra a bochecha</div><div style="text-align: left;">para reaprender o teu cheiro</div><div style="text-align: left;">e perlar o teu suor como gotas de ouro</div><div style="text-align: left;">nos seus pulmões, como se, enquanto ela te segura,</div><div style="text-align: left;">também a morte, estivesse a agarrar-se ao teu pulso.</div><div style="text-align: left;">A minha avó dá beijos como se a história</div><div style="text-align: left;">nunca tivesse acabado, como se, algures,</div><div style="text-align: left;">um corpo ainda</div><div style="text-align: left;">estivesse a ruir.</div><div style="text-align: left;"><br /><br /><span style="font-family: courier;"><i>Ocean Vuong</i></span></div>Pedro Ludgerohttp://www.blogger.com/profile/00589474142401671272noreply@blogger.com0