sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Uma carniça

Lembrai-vos do que vimos, ó alma dileta,
Nessa manhã de um verão brando:
No desvio de um trilho, uma carniça abjeta
Por entre seixos repousando,

As pernas para o ar como mulher lasciva
Que com veneno inflama o suor,
Abria de uma forma lânguida, ofensiva,
O seu ventre prenhe de odor.

O sol resplandecia para cozinhar
Com apuro esta podridão, 
Querendo devolver, mas a centuplicar,
À Natura a sua criação;

E a soberba carcaça obtinha o olhar celeste
Que ao abrir de uma flor é dado.
Tão forte era o miasma, que quase perdeste
A consciência nesse relvado.

Sobre tal ventre fétido as moscas zumbiam,
Del' marchavam negras enchentes
De larvas, que qual líquido espesso escorriam
Ao longo dos trapos viventes.

E tudo isso descia, subia qual vaga,
Numa espumante agitação;
Como se houvesse vida, uma inspiração vaga,
No corpo em multiplicação. 

Esse mundo emitia um canto extravagante, 
Como vento ou água ligeira,
Como o grão sacudido por ritmo constante
Ao ser passado na joeira.

À maneira de um sonho, a forma se extinguia,
Esboço insistindo em tardar
Numa tela esquecida, e que o pintor teria
De concluir a recordar.

Uma cadela inquieta p'las rochas tapada
Olhava para nós com ira,
Esperando a ocasião de ir buscar à ossada
O naco de que desistira.

- Mas haveis de chegar a similar figura,
Sereis infeção repugnante,
Astro do meu olhar, sol da minha natura,
Vós, meu anjo, vós, minha amante!

Sim!, haveis de assim ser, vós que em graça reinais,
No fim do rol de sacramentos,
Ao irdes, sob a relva e as florações brutais,
Criar bolor entre ossamentos.

Minha beleza, então, dizei à bicharada
Que aos beijos vos irá comer,
Que eu preservei a forma e a essência sagrada
De meu amor a apodrecer.


Charles Baudelaire

sábado, 10 de julho de 2021

Hino à Beleza

Provéns do céu profundo ou da sua objeção,
Beleza, se, quando olhas, maldita e sagrada,
Vertes crime e mercê sem fazer distinção,
E assim podes ao vinho ficar comparada?

Conténs no teu olhar a aurora e o ocaso;
Teu cheiro é o da noitinha quando tormentosa;
Teu beijo é uma poção que vem de antigo vaso
Tornando o herói cobarde e a criança corajosa. 

Provéns do abismo negro ou de um astro és a graça?
O Fado as tuas saias segue farejando;
Espalhas ao acaso alegria e desgraça,
E respondes por nada, tudo governando.

Caminhas sobre corpos mortos e humilhados;
Tens, entre as tuas joias, o encanto do Horror;
O Assassínio, um dos teus enfeites mais prezados,
Sobre o teu ventre ufano dança com amor.

O efémero ofuscado voa p'ra ti, vela,
Se crepita e flameja, ainda louva essa chama!
O ansioso que se inclina ante uma mulher bela
Parece um moribundo que seu túmulo ama.

Provenhas tu do céu ou do inferno, que importa,
Beleza, monstro incauto, horrendo, desmedido!
Se teus olhos, sorrisos, pés, me abrem a porta
De um Infinito que amo sem ter conhecido?

Do Diabo ou de Deus, que importa? Anjo ou Sereia,
Que importa, se tu és fada de olhar de veludo,
Ritmo, aroma, clarão, rainha em minha ideia,
Tirando peso ao tempo e repugnância a tudo?


Charles Baudelaire

sexta-feira, 4 de junho de 2021

Correspondências

No templo Natural, não há vivo pilar
Que não deixe escapar certa fala confusa;
Os símbolos dos bosques que todo o homem cruza
Vão lançando sobre ele um olhar familiar.

Como ecos que de longe se fundem em somas
Compondo uma profunda e medonha unidade,
Tão vasta como a noite e como a claridade,
Correspondem-se as cores, os sons e os aromas.

Pode o aroma ser fresco como o da criança, 
Doce como um oboé, verde como a campina,
- Ou pode ser corrupto, rico, ter pujança

De coisa que se expande e que jamais declina,
Como o âmbar, o almíscar, o incenso, o benjoim,
Que cantam os sentidos e a alma em frenesim.


Charles Baudelaire

sexta-feira, 28 de maio de 2021

O albatroz

Muitas vezes, por gozo, os homens da equipagem
Prendem um albatroz, bicho marinho e largo
Que usa seguir, parceiro indolente de viagem,
O navio que voga pelo abismo amargo.

Mal o põem em cena no palco do chão,
Esse rei do Azul, inábil e acanhado,
Deixa cair as asas em lamentação,
Quais grandes remos brancos que arrasta ao seu lado.

O viajante dos ares perdeu a beleza!
Agora só faz rir, quem há pouco encantava!
Um mete-lhe no bico um cachimbo que o lesa,
Outro imita o defeito de um manco que voava!

Ao príncipe do céu, que do arqueiro se ria
E a tormenta assombrava, o Poeta é semelhante;
Exilado no solo, em plena zombaria,
Impedem-no de andar as asas de gigante.


Charles Baudelaire

domingo, 9 de maio de 2021

Bênção

Assim que, por decreto da força suprema,
Aparece o Poeta no mundo entediado,
Sua mãe assustada e por demais blasfema,
Contra o Deus que a lamenta ergue um punho cerrado:

– "Ah!, tivesse eu parido um ninho de serpentes,
Em vez de dar meu leite a toda esta irrisão!
Maldita seja a noite de amor's transientes 
Em que foi concebida a minha expiação!

Se entre as mulheres todas me foste buscar
P'ra trazer a aversão ao meu triste marido,
E se nem sequer posso nas chamas lançar,
Como carta de amor, o monstro diminuído,

O rancor que me impinges farei recair
No instrumento votado às Tuas maldições,
E essa árvore ruim tanto a hei de ferir
Que jamais crescerão seus fétidos botões!"

Engole então a baba que o rancor soltara,
E, não sabendo ler os desígnios eternos,
Na Geena profunda ela mesma prepara
As piras consagradas aos crimes maternos.

Mas o Miúdo enjeitado o próprio sol consome
Sob a guarda invisível do seu Querubim,
E em tudo o que bebe e em tudo o que come
Ele encontra a ambrosia e o néctar carmim.

Conversa com a nuvem, brinca com a aragem,
Embriaga-se, cantando, com a sacra via;
E o Espírito que o segue na sua romagem
Chora ao vê-lo, qual ave, cheio de alegria.

Os seres que ele estima julgam-no nojento,
E, colhendo coragem na sua bondade,
Tentam ver quem consegue arrancar-lhe um lamento
Para assim se adestrarem na ferocidade.

Em todo o vinho e pão que lhe hão de ir ter à boca
Vão misturando cinza com escarros vis;
Hipócritas, rejeitam tudo o que ele toca
E penam se o seu trilho com o del' condiz.

Nas praças da cidade a sua mulher brama:
"Já que ele mitifica a minha formosura,
Levarei o viver que um ídolo reclama,
Com direito ao retoque da antiga pintura;

E hei de me empanturrar de incenso, mirra, nardo,
E de genuflexões, de carnes, de licores,
Zombando enquanto roubo ao coração do bardo
O que é devido a Deus em forma de louvores!

E, quando de ímpias farsas me achar enjoada,
Minha mão fraca e forte sobre el' pousarei;
E com unhas de harpia hei de abrir uma estrada
Com que ao seu coração por certo chegarei.

Como um pássaro jovem que treme e palpita,
Esse órgão tirarei do vermelho carnal,
E, como quem sacia a besta favorita,
Vou atirar-lho ao chão com desprezo total!"

Para o Céu, onde avista o seu trono imponente,
O Poeta sereno ergue as mãos piedosas
E os profundos clarões de tão lúcida mente
Ocultam-lhe a aparência das turbas furiosas:

- "Bendito sejais, Deus, que entregais a dolência
Como cura divina p'ra os nossos desvios,
Como sendo a mais pura, a mais perfeita essência
Que prepara os robustos p'ra os júbilos pios!

Há de um dia o Poeta por certo ir subindo
Às filas venturosas das santas Legiões,
E haveis de o convidar para o festejo infindo
Dos Tronos, das Virtudes, das Dominações.

Sei bem quanto é preciso que a vida me doa
P'ra da terra e do inferno exceder o estatuto,
E que para entrançar tal mística coroa
A todo o mundo e tempo há que pedir tributo.

Mas as joias perdidas da Palmira antiga,
As pérolas do mar, os metais por saber,
Engastados por Vós, nada há que consiga
Compor um diadema tão claro a esplender;

Só pura luz será sua matéria-prima,
Vinda do santo lar dos primórdios radiosos,
Da qual olhos mortais, no fulgor que os anima,
Não são mais do que espelhos turvos e chorosos!"


Charles Baudelaire 

domingo, 3 de janeiro de 2021

Beijando em vietnamita

A minha avó dá beijos
como se houvesse bombas a rebentar no quintal
onde hortelã e jasmim entrelaçam odores
e os fazem passar pela janela da cozinha,
como se, algures, um corpo estivesse a ruir
e as chamas pudessem regressar
através do emaranhado da coxa de um miúdo,
como se, para transpores uma porta, o teu tronco
tivesse que dançar a dor que as balas fizeram ao sair.
Quando a minha avó dá beijos, nunca
a meiguice é estrepitosa, os lábios não apertam
com música ocidental, ela beija como se quisesse
inalar-te, o nariz comprimido contra a bochecha
para reaprender o teu cheiro
e perlar o teu suor como gotas de ouro
nos seus pulmões, como se, enquanto ela te segura,
também a morte, estivesse a agarrar-se ao teu pulso.
A minha avó dá beijos como se a história
nunca tivesse acabado, como se, algures,
um corpo ainda
estivesse a ruir.


Ocean Vuong