quarta-feira, 13 de setembro de 2023

Barba-Azul

Abriste a porta, era essa a interdição;
Entra, pois, vê por qual futilidade
Te engano... Aqui não há um caldeirão,
Um tesouro, um espelho onde a verdade
Cara está, nada te há de arrepiar,
Não há cadáver's de mulher's com manha,
Apenas o que vês... Mas volta a olhar –
Um quarto que só tem teias de aranha.
Da vida foi só isto o que escondi,
Não fosse alguém saber-me por completo;
Tanta profanação então senti
Co' a tomada do meu quarto secreto
Que o teu rosto não mais contemplarei.
Fica co' isto. Para outro lado irei.

Edna St. Vincent Millay

sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Nota 11

Embora regularmente leia textos escritos em inglês, francês ou castelhano, tenho de assumir (desde logo para mim mesmo) que aquelas frases, aqueles versos, que, no dizer de Kafka, quebraram o meu mar de gelo como se fossem machados, estavam escritos em português. Não eram necessariamente assinados por autores de língua portuguesa, mas estavam escritos nessa língua.

O meu papel como tradutor nada tem a ver com uma especial competência de decifração. Não domino nenhuma língua estrangeira de forma assim tão exemplar. Traduzo porque, a despeito do meu compromisso de fidelidade a um texto inglês ou francês, quero senti-lo como "texto" (como literatura) na minha própria língua. 

Nesta fase da minha vida em que já não consigo escrever poesia em meu nome (e, como o Cesariny, não luto contra isso), as minhas traduções são partilhadas com o sonho de poderem, talvez, para alguém, funcionar como atentados de comoção verbal.

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Spleen

Sou tal e qual o rei de um país pluvioso,
Rico, mas sem poder, jovem, porém idoso,
Que, p'las vénias dos aios mostrando desdém,
Com nenhum animal (nem com cães) se entretém.
Qualquer caça, falcão, não se alegra com nada,
Nem com povo a morrer diante da sacada.
Do bobo favorito a balada risível
Já não distrai o rosto do enfermo terrível;
Parece adorno em tumba a flor-de-lis do leito,
E às camareiras que acham todo o rei perfeito
Não lhes vale o impudor no modo de vestir
P'ra o jovem esqueleto fazerem sorrir.
Jamais o sábio que ouro faz terá logrado
De seu ser extirpar o elemento viciado,
E nos banhos de sangue herdados dos Romanos,
Dos quais se lembra o nobre quando entrado em anos,
Não soube reanimar esse pasmo que morre
E onde em lugar de sangue um verde Lete corre.

Charles Baudelaire