sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Para um stor de purtuguês

Ao Senhor Pardo, stor de purtuguês,
Meu filho tá a faltar hoje outra vez.
Tem sarampos, e aquele narigão
Se ele o assoa parece um carrilhom.

Como se não bastasse o que sofreu
Há noite uma outra perna lhe cresceu.
A tosse é forte e não se vai embora
E o cucoruto sai-lhe de hora em hora.

Desculpe o miúdo tar hoje a faltar.
Com certeza esta alhada áde passar
Quando o stor lhe disser que já acabou
A bodega que o tal Camões rimou.

Doug MacLeod

sábado, 12 de outubro de 2024

A ladainha de Satanás

Tu, que entre Anjos ressais, mais belo e ilustrado,
Deus que a sorte traiu, de louvores privado,

Tem piedade, ó Satã, da minha longa lástima!

Ó Príncipe do exílio, a quem deram traição,
E que, vencido, sempre te reergues mais são,

Tem piedade, ó Satã, da minha longa lástima!

Sapiente, ó grande rei das coisas escondidas,
Familiar curandeiro de humanas feridas,

Tem piedade, ó Satã, da minha longa lástima!

Tu que, mesmo ao leproso, ao maldito deposto,
Ensinas pelo amor a encontrar no Éden gosto,

Tem piedade, ó Satã, da minha longa lástima!

Tu que, da imensa Morte, tua velha amante,
Engendraste a Esperança – louca fascinante!

Tem piedade, ó Satã, da minha longa lástima!

Tu que ao proscrito dás o olhar calmo, altaneiro,
Que junto ao cadafalso dana um povo inteiro,

Tem piedade, ó Satã, da minha longa lástima!

Tu que conheces onde, em terras invejosas,
Deus ciumento escondeu as pedras preciosas,

Tem piedade, ó Satã, da minha longa lástima!

Tu que vês com clareza os fundos arsenais
Onde dorme sepulto o povo dos metais,

Tem piedade, ó Satã, da minha longa lástima!

Tu cuja larga mão esconde os precipícios
Ao sonâmbulo errante em bordas de edifícios,

Tem piedade, ó Satã, da minha longa lástima!

Tu que tornas mais mol' (magia!) a velha espinha
Do ébrio que se atrasou e um cavalo espezinha,

Tem piedade, ó Satã, da minha longa lástima!

Tu que, p'ra consolar o homem frágil que sofre,
Lhe ensinaste a juntar salitre com enxofre,

Tem piedade, ó Satã, da minha longa lástima!

Tu que pões teu ferrete, ó cúmplice subtil,
Sobre a testa do Creso implacável e vil,

Tem piedade, ó Satã, da minha longa lástima!

Tu que em olhos e peitos de damas propagas
O amor pelos andrajos e o culto das chagas,

Tem piedade, ó Satã, da minha longa lástima!

Bastão dos exilados, luz dos inventores,
Confessor de enforcados e conspiradores,

Tem piedade, ó Satã, da minha longa lástima!

Pai adotivo desses que em irado breu
Do terreal paraíso Deus seu Pai correu,

Tem piedade, ó Satã, da minha longa lástima!


Oração

Glória e louvor a ti, Satanás, nas alturas
Do Céu, onde reinaste, e também nas funduras
Do Inferno, onde, vencido, sonhas tão calado!
Faz com que a minha alma repouse a teu lado,
Sob a Árvore da Ciência, quando se espalhar
A copa em tua fronte, como um novo Altar!

Charles Baudelaire

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Recolhimento

Porta-te bem, ó Dor, e mantém-te quieta.
Chegou o Anoitecer; pediste-o, foi-te dado:
Na cidade embrulhada em atmosfera preta,
Uns encontram a paz, outros o mau cuidado.

Enquanto dos mortais a multidão abjeta,
Sob o açoite do Gozo, esse algoz desalmado,
Para colher remorso à festa se submeta,
Prefere, ó Dor, a minha mão; vem p'ra este lado,

Longe deles. E vê, à varanda no céu,
Vestido como um velho, o Tempo que morreu;
O Pesar que das águas sobe sorridente;

O moribundo Sol que sob arco descansa,
E, qual longa mortalha arrastando-se a Oriente,
Ouve, amor, ouve a Noite tão doce que avança. 

Charles Baudelaire