domingo, 15 de junho de 2025

Mulheres danadas (Delphine e Hippolyte)

À luz de lamparinas tão-só langorosas,
Sobre almofadas fundas e cheias de odor,
Hippolyte pensava em carícias fogosas
Que erguiam a cortina ao seu jovem candor.

Procurava, toldado o olhar pela tormenta,
Da sua ingenuidade o céu que se afastou,
Tal qual um viajante que a vista orienta
Para o horizonte azul que de manhã passou.

Lágrimas preguiçosas em olhos com sono,
Ar quebrado, estupor, uma volúpia lassa,
Braços vencidos, armas vãs ao abandono,
Tudo servia e ornava a sua débil graça.

Estendida a seus pés, calma, em grande alegria,
Delphine devorava-a com olhos ardentes,
Como o forte animal que uma presa vigia,
Depois de logo a ter marcado com os dentes.

Ajoelhada ante a frágil, tal beleza brava,
Soberba, ia aspirando com lascivo agrado
O vinho triunfal, e à outra se chegava
P'ra nela recolher o mais doce ‘obrigado’.

Procurava no olho da pálida presa
A mudez que é cantada nos cantos do gozo,
E ainda a gratidão de sublime grandeza
Que da pálpebra sai qual suspiro moroso.

– "Hippolyte, meu bem, qual é tua opinião?
Compreendes por fim que não se deve dar
As rosas do começo em sacra imolação
Àqueles vendavais que as fariam murchar?

Meus beijos são subtis como, à tarde, o carinho
Que os efémeros dão ao lago transparente,
E os desse que te quer sulcarão seu caminho
Como faz a carroça, o arado pungente;

Passarão sobre ti como juntas de bois
Ou pesados corcéis de cascos sem piedade...
Minha irmã, Hippolyte, volta o rosto, pois,
Minha alma e coração, tu, meu todo e metade,

Vira p'ra aqui o olhar – azul, brilho de céus!
Divo bálsamo, sempre que chegar a mim,
De prazer's mais obscuros tirarei os véus
E um sono te darei onde o sonho é sem fim!"

Mas Hippolyte, logo, erguendo a jovem testa:
– "Não tenho ingratidão nem remorso na ideia,
Só que há uma aflição, amor, que me molesta
Como a que sobrevém à mais terrível ceia.

Desabam sobre mim terrores sufocantes
E negros batalhões de fantasmas à toa,
Que me querem levar por vias inconstantes
Que o horizonte a sangrar cabalmente agrilhoa.

Teremos cometido estranho desarranjo?
Explica, se puder's, meu medo em frenesi:
Estremeço de horror quando dizes: ‘Meu anjo!’,
Contudo, a minha boca vai toda p'ra ti.

Tu, meu pensar, não olhes p'ra mim desse modo!
Tu que eu prezo sem prazo, ó irmã de eleição,
Ainda que só fosses estendido engodo
E assim desses início à minha perdição!"

Como quem bate os pés na trípode de ferro,
Movendo a crina trágica, a vista funesta,
Delphine reagiu com despótico berro:
– "Quem, audaz, ante o amor com o inferno contesta?

P'ra sempre amaldiçoo o inútil fantasista
Que uma vez se lembrou, refém de estupidez
Sem ter fecundidade ou solução à vista,
De nas coisas do amor misturar a honradez!

Aquel' que quer unir num acorde sagrado
A noite com o dia, a sombra com calor,
Jamais aquecerá o seu corpo entrevado
Nesse sol escarlate que se chama amor!

Vai, se queres, buscar um estúpido esposo;
Teu peito virgem dá ao beijar que é morder;
E, cheia de um remorso lívido, horroroso,
Teus seios com estigmas me hás de devolver...

Só se pode a um senhor neste mundo servir!"
Mas a criança, de súbito em confissão,
Gritou sofrendo: – "Sinto em meu ser se expandir
O mais aberto abismo; o abismo é o coração!

Vazio desmedido, vulcão inflamável!
Nada satisfará este monstro a chorar
Nem a sede da Euménide que, insaciável,
Com archote na mão, o queima até sangrar.

Que as cortinas corridas nos livrem do mundo,
E seja a nossa paz da lassidão o efeito!
Eu quero aniquilar-me em teu colo profundo
E a frescura do túmulo achar em teu peito!"

– Descei, descei por dor que em força vos vitime,
Descei pelo caminho de um inferno infindo!
Mergulhai no mais fundo do abismo, onde o crime,
Flagelado por vento do céu não provindo,

Ferve no caos sonoro de uma tempestade.
Sombras loucas, correi p'ra toda a tentação;
Jamais satisfareis essa ferocidade,
E nascerá do gozo a vossa punição.

Nenhum raio há de dar luz fresca a tais cavernas;
Por fendas nas paredes, miasmas febris
Penetram inflamando-se como lanternas
E invadem vossos corpos com perfumes vis.

A rispidez estéril da vossa luxúria
Retesa vossa pel', vossa sede desgasta,
E o desejo que em vós é ventania em fúria
Faz estalar a carne qual bandeira gasta.

Longe de gente viva, errantes, condenadas,
Como lobos correi através do deserto;
Fazei vosso destino, almas desordenadas,
E fugi do infinito que em vós foi inserto!

Charles Baudelaire 

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