quarta-feira, 25 de junho de 2025

O que dorme no vale

É um furo de verdor onde canta um ribeiro
Que nas ervas pendura trapos delirando
Em prata; onde o sol, desde o monte altaneiro,
Reluz: é um valezinho em raios espumando.

Um jovem tropa, a boca aberta, sem chapéu,
Nuca imersa no fresco de azuis agriões,
Dorme; na relva está deitado, sob o céu,
Pálido em leito verde onde chovem clarões.

Com os pés nos gladíolos, dorme. Sorridente
Tal qual uma criança em sono, se doente:
Tem frio: a Natureza o embale em quente jeito!

Nenhum odor provoca no nariz reação;
O rapaz dorme ao sol, tem sobre o peito a mão
Calma, e dois furos rubros no flanco direito.

Arthur Rimbaud

sábado, 21 de junho de 2025

A meio da escada

A meio da descida da escada
Há um degrau
Onde me sento.
Só com este
E não outro
Degrau me
Contento.
Não estou lá em baixo,
Não estou lá em cima;
Então este é o degrau
Onde a marcha
Por norma
Termina.

A meio da subida da escada
Em cima não é
E em baixo também não.
Nem é quarto de criança,
Nem povoação.
E assim pensamentos malucos
Põem o juízo a girar:
"Não é realmente
Em lado nenhum!
Em vez disso
É noutro lugar!"

A. A. Milne

segunda-feira, 16 de junho de 2025

O gato e o sol

O gato abriu os olhos,
O sol neles entrou.
Fechou o gato os olhos,
O sol neles ficou.

Quando, na escuridão, 
Vejo o sol aos bocados,
É esta a explicação:
Há gatos acordados.

Maurice Carême

domingo, 15 de junho de 2025

Mulheres danadas (Delphine e Hippolyte)

À luz de lamparinas tão-só langorosas,
Sobre almofadas fundas e cheias de odor,
Hippolyte pensava em carícias fogosas
Que erguiam a cortina ao seu jovem candor.

Procurava, toldado o olhar pela tormenta,
Da sua ingenuidade o céu que se afastou,
Tal qual um viajante que a vista orienta
Para o horizonte azul que de manhã passou.

Lágrimas preguiçosas em olhos com sono,
Ar quebrado, estupor, uma volúpia lassa,
Braços vencidos, armas vãs ao abandono,
Tudo servia e ornava a sua débil graça.

Estendida a seus pés, calma, em grande alegria,
Delphine devorava-a com olhos ardentes,
Como o forte animal que uma presa vigia,
Depois de logo a ter marcado com os dentes.

Ajoelhada ante a frágil, tal beleza brava,
Soberba, ia aspirando com lascivo agrado
O vinho triunfal, e à outra se chegava
P'ra nela recolher o mais doce ‘obrigado’.

Procurava no olho da pálida presa
A mudez que é cantada nos cantos do gozo,
E ainda a gratidão de sublime grandeza
Que da pálpebra sai qual suspiro moroso.

– "Hippolyte, meu bem, qual é tua opinião?
Compreendes por fim que não se deve dar
As rosas do começo em sacra imolação
Àqueles vendavais que as fariam murchar?

Meus beijos são subtis como, à tarde, o carinho
Que os efémeros dão ao lago transparente,
E os desse que te quer sulcarão seu caminho
Como faz a carroça, o arado pungente;

Passarão sobre ti como juntas de bois
Ou pesados corcéis de cascos sem piedade...
Minha irmã, Hippolyte, volta o rosto, pois,
Minha alma e coração, tu, meu todo e metade,

Vira p'ra aqui o olhar – azul, brilho de céus!
Divo bálsamo, sempre que chegar a mim,
De prazer's mais obscuros tirarei os véus
E um sono te darei onde o sonho é sem fim!"

Mas Hippolyte, logo, erguendo a jovem testa:
– "Não tenho ingratidão nem remorso na ideia,
Só que há uma aflição, amor, que me molesta
Como a que sobrevém à mais terrível ceia.

Desabam sobre mim terrores sufocantes
E negros batalhões de fantasmas à toa,
Que me querem levar por vias inconstantes
Que o horizonte a sangrar cabalmente agrilhoa.

Teremos cometido estranho desarranjo?
Explica, se puder's, meu medo em frenesi:
Estremeço de horror quando dizes: ‘Meu anjo!’,
Contudo, a minha boca vai toda p'ra ti.

Tu, meu pensar, não olhes p'ra mim desse modo!
Tu que eu prezo sem prazo, ó irmã de eleição,
Ainda que só fosses estendido engodo
E assim desses início à minha perdição!"

Como quem bate os pés na trípode de ferro,
Movendo a crina trágica, a vista funesta,
Delphine reagiu com despótico berro:
– "Quem, audaz, ante o amor com o inferno contesta?

P'ra sempre amaldiçoo o inútil fantasista
Que uma vez se lembrou, refém de estupidez
Sem ter fecundidade ou solução à vista,
De nas coisas do amor misturar a honradez!

Aquel' que quer unir num acorde sagrado
A noite com o dia, a sombra com calor,
Jamais aquecerá o seu corpo entrevado
Nesse sol escarlate que se chama amor!

Vai, se queres, buscar um estúpido esposo;
Teu peito virgem dá ao beijar que é morder;
E, cheia de um remorso lívido, horroroso,
Teus seios com estigmas me hás de devolver...

Só se pode a um senhor neste mundo servir!"
Mas a criança, de súbito em confissão,
Gritou sofrendo: – "Sinto em meu ser se expandir
O mais aberto abismo; o abismo é o coração!

Vazio desmedido, vulcão inflamável!
Nada satisfará este monstro a chorar
Nem a sede da Euménide que, insaciável,
Com archote na mão, o queima até sangrar.

Que as cortinas corridas nos livrem do mundo,
E seja a nossa paz da lassidão o efeito!
Eu quero aniquilar-me em teu colo profundo
E a frescura do túmulo achar em teu peito!"

– Descei, descei por dor que em força vos vitime,
Descei pelo caminho de um inferno infindo!
Mergulhai no mais fundo do abismo, onde o crime,
Flagelado por vento do céu não provindo,

Ferve no caos sonoro de uma tempestade.
Sombras loucas, correi p'ra toda a tentação;
Jamais satisfareis essa ferocidade,
E nascerá do gozo a vossa punição.

Nenhum raio há de dar luz fresca a tais cavernas;
Por fendas nas paredes, miasmas febris
Penetram inflamando-se como lanternas
E invadem vossos corpos com perfumes vis.

A rispidez estéril da vossa luxúria
Retesa vossa pel', vossa sede desgasta,
E o desejo que em vós é ventania em fúria
Faz estalar a carne qual bandeira gasta.

Longe de gente viva, errantes, condenadas,
Como lobos correi através do deserto;
Fazei vosso destino, almas desordenadas,
E fugi do infinito que em vós foi inserto!

Charles Baudelaire 

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Para um stor de purtuguês

Ao Senhor Pardo, stor de purtuguês,
Meu filho tá a faltar hoje outra vez.
Tem sarampos, e aquele narigão
Se ele o assoa parece um carrilhom.

Como se não bastasse o que sofreu
Há noite uma outra perna lhe cresceu.
A tosse é forte e não se vai embora
E o cucoruto sai-lhe de hora em hora.

Desculpe o miúdo tar hoje a faltar.
Com certeza esta alhada áde passar
Quando o stor lhe disser que já acabou
A bodega que o tal Camões rimou.

Doug MacLeod

sábado, 12 de outubro de 2024

A ladainha de Satanás

Tu, que entre Anjos ressais, mais belo e ilustrado,
Deus que a sorte traiu, de louvores privado,

Tem piedade, ó Satã, da minha longa lástima!

Ó Príncipe do exílio, a quem deram traição,
E que, vencido, sempre te reergues mais são,

Tem piedade, ó Satã, da minha longa lástima!

Sapiente, ó grande rei das coisas escondidas,
Familiar curandeiro de humanas feridas,

Tem piedade, ó Satã, da minha longa lástima!

Tu que, mesmo ao leproso, ao maldito deposto,
Ensinas pelo amor a encontrar no Éden gosto,

Tem piedade, ó Satã, da minha longa lástima!

Tu que, da imensa Morte, tua velha amante,
Engendraste a Esperança – louca fascinante!

Tem piedade, ó Satã, da minha longa lástima!

Tu que ao proscrito dás o olhar calmo, altaneiro,
Que junto ao cadafalso dana um povo inteiro,

Tem piedade, ó Satã, da minha longa lástima!

Tu que conheces onde, em terras invejosas,
Deus ciumento escondeu as pedras preciosas,

Tem piedade, ó Satã, da minha longa lástima!

Tu que vês com clareza os fundos arsenais
Onde dorme sepulto o povo dos metais,

Tem piedade, ó Satã, da minha longa lástima!

Tu cuja larga mão esconde os precipícios
Ao sonâmbulo errante em bordas de edifícios,

Tem piedade, ó Satã, da minha longa lástima!

Tu que tornas mais mol' (magia!) a velha espinha
Do ébrio que se atrasou e um cavalo espezinha,

Tem piedade, ó Satã, da minha longa lástima!

Tu que, p'ra consolar o homem frágil que sofre,
Lhe ensinaste a juntar salitre com enxofre,

Tem piedade, ó Satã, da minha longa lástima!

Tu que pões teu ferrete, ó cúmplice subtil,
Sobre a testa do Creso implacável e vil,

Tem piedade, ó Satã, da minha longa lástima!

Tu que em olhos e peitos de damas propagas
O amor pelos andrajos e o culto das chagas,

Tem piedade, ó Satã, da minha longa lástima!

Bastão dos exilados, luz dos inventores,
Confessor de enforcados e conspiradores,

Tem piedade, ó Satã, da minha longa lástima!

Pai adotivo desses que em irado breu
Do terreal paraíso Deus seu Pai correu,

Tem piedade, ó Satã, da minha longa lástima!


Oração

Glória e louvor a ti, Satanás, nas alturas
Do Céu, onde reinaste, e também nas funduras
Do Inferno, onde, vencido, sonhas tão calado!
Faz com que a minha alma repouse a teu lado,
Sob a Árvore da Ciência, quando se espalhar
A copa em tua fronte, como um novo Altar!

Charles Baudelaire

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Recolhimento

Porta-te bem, ó Dor, e mantém-te quieta.
Chegou o Anoitecer; pediste-o, foi-te dado:
Na cidade embrulhada em atmosfera preta,
Uns encontram a paz, outros o mau cuidado.

Enquanto dos mortais a multidão abjeta,
Sob o açoite do Gozo, esse algoz desalmado,
Para colher remorso à festa se submeta,
Prefere, ó Dor, a minha mão; vem p'ra este lado,

Longe deles. E vê, à varanda no céu,
Vestido como um velho, o Tempo que morreu;
O Pesar que das águas sobe sorridente;

O moribundo Sol que sob arco descansa,
E, qual longa mortalha arrastando-se a Oriente,
Ouve, amor, ouve a Noite tão doce que avança. 

Charles Baudelaire

domingo, 22 de setembro de 2024

O abismo

Com o abismo Pascal se punha em movimento.
– Tudo é abismo, ai! – agir, querer, sonhar,
Dizer! se pelo algum começa a se eriçar,
Sei que é do próprio Medo que provém o vento.

No alto, em baixo, ao redor, o fundo, a beira-mar,
O silêncio, o espaço encantador, cruento...
No imo das minhas noites, Deus com seu talento
Recria o pesadelo sem nunca o parar.

Temo o sono conforme se teme um buraco,
Enorme em vago horror, e com destino opaco;
Pelas janelas todas só vejo infinito,

E a mente, p'la vertigem sem fim assombrada,
A insensibilidade cobiça do nada.
– Oh! aos Seres e Números ficar restrito!

Charles Baudelaire 

domingo, 15 de setembro de 2024

Os sete velhos

A Victor Hugo

Fervilhante cidade, o teu sonhar é tanto
Que à luz do dia o espetro faz parar quem passa!
O mistério, qual seiva, corre em cada canto
Pelos canais estreitos da pujante massa.

Uma manhã, enquanto, na rua em enfado,
As casas, pela bruma tornadas maiores,
Simulavam os cais de um rio dilatado,
E, em tal décor afim da alma dos atores,

Uma amarela névoa conspurcava o espaço,
Ia eu, qual herói de corpo enrijecido
E discutindo com a alma já em cansaço,
Num bairro por carroças todo sacudido.

De repente, um velhote cujo desalinho
Imitava o amarelo do céu tão chuvoso
(O ar pedinte faria chover dinheirinho
Se os olhos não tivessem um brilho maldoso),

Surgiu. Tinha a pupila, dir-se-ia, encharcada
Em fel; o olhar tornava as geadas mais agudas,
E a sua barba longa, hirta como uma espada,
Estendia-se como se fosse a de Judas.

‘stava, mais que curvado, quebrado, a coluna
Com a perna a formar todo um ângulo reto,
Ao ponto de a bengala, p'ra a cena oportuna,
O tornar tão inábil que lhe dava o aspeto

De um quadrúpede enfermo ou judeu com três patas.
Lá ia em neve e lama o velho se atolando,
Como quem pisa os mortos com suas chanatas,
De modo algum neutral, mas o mundo odiando.

Seguia-se outro igual: vara, andrajos, feições,
Nada dif'renciava o gémeo secular
De um mesmo inferno vindo, e as barrocas visões
Para um destino incerto marchavam a par.

Estaria a ser alvo de um complô odioso?
Ou era o vil acaso que assim me humilhava?
Sete vezes contei, a um ritmo cadencioso,
O sinistro ancião que se multiplicava!

Se houver quem faça pouco da minha inquietude,
Desdenhando o menor calafrio fraterno,
Atenda a que, a despeito da decrepitude,
Os sete hediondos monstros tinham ar eterno!

Pod'ria, vendo o oitavo, ser sobrevivente
Ao sósia inexorável, trocista e fatal,
De si próprio filho e pai, Fénix rep’lente?
– Mas as costas virei ao cortejo infernal.

Como um bêbado irado por ver a dobrar,
Fui p'ra casa, fechei a porta, estarrecido,
Indisposto, febril, co' a mente a delirar,
Por tudo o que é absurdo e mistério ferido!

Quis retomar o leme, a mente, mas em vão,
O esforço escarnecido pela água em motim –
Velha gabarra em dança, em dança o coração,
Sem mastros, sobre um mar monstruoso e sem fim!

Charles Baudelaire

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

Madrigal triste

I
A sensatez não tem vantagem.
Sê bonita! e sê triste! Um pranto 
Ao rosto traz melhor imagem, 
Como o rio faz à paisagem; 
Com mau tempo a flor ganha tanto.
 
Prefiro quando o bom humor
Foge de teu rosto arrasado;
E o peito se afunda em horror;
E o teu presente aceita expor
A nuvem atroz do passado.

Prefiro se o grande olho exala
Água como o sangue abrasante;
Se, a despeito da mão que embala,
Tua dor, tão pesada, estala
Como arquejo de agonizante.

Aspiro, volúpia divina!
Hino tão profundo, deleite!
O gemer que o peito domina;
Teu coração só se ilumina 
Com perlas que teu olho deite!


II
Transborda, eu sei, teu coração
De velhos amor's extirpados;
E, assim, qual forja em combustão,
Teu colo faz incubação
Do orgulho caro aos condenados;

Mas, querida, enquanto o que sonhas
Não for o reflexo do Inferno,
E em pesadelo não te ponhas
Com paixão por gládios, peçonhas,
Por ferro e pó, tudo isso eterno,

E não andes sempre inibida,
Adivinhando em tudo o horrível,
Tremendo em horas sem saída,
P'ra te poder's sentir cingida
Por um Fastio irresistível,

Não poderás, escrava alteza
Que me amas com medo brutal,
No horror de uma noite que lesa
Dizer-me, a alma em gritos acesa:
"Ó meu Rei, a ti sou igual!"

Charles Baudelaire