domingo, 15 de setembro de 2024

Os sete velhos

A Victor Hugo

Fervilhante cidade, o teu sonhar é tanto
Que à luz do dia o espetro faz parar quem passa!
O mistério, qual seiva, corre em cada canto
Pelos canais estreitos da pujante massa.

Uma manhã, enquanto, na rua em enfado,
As casas, pela bruma tornadas maiores,
Simulavam os cais de um rio dilatado,
E, em tal décor afim da alma dos atores,

Uma amarela névoa conspurcava o espaço,
Ia eu, qual herói de corpo enrijecido
E discutindo com a alma já em cansaço,
Num bairro por carroças todo sacudido.

De repente, um velhote cujo desalinho
Imitava o amarelo do céu tão chuvoso
(O ar pedinte faria chover dinheirinho
Se os olhos não tivessem um brilho maldoso),

Surgiu. Tinha a pupila, dir-se-ia, encharcada
Em fel; o olhar tornava as geadas mais agudas,
E a sua barba longa, hirta como uma espada,
Estendia-se como se fosse a de Judas.

‘stava, mais que curvado, quebrado, a coluna
Com a perna a formar todo um ângulo reto,
Ao ponto de a bengala, p'ra a cena oportuna,
O tornar tão inábil que lhe dava o aspeto

De um quadrúpede enfermo ou judeu com três patas.
Lá ia em neve e lama o velho se atolando,
Como quem pisa os mortos com suas chanatas,
De modo algum neutral, mas o mundo odiando.

Seguia-se outro igual: vara, andrajos, feições,
Nada dif'renciava o gémeo secular
De um mesmo inferno vindo, e as barrocas visões
Para um destino incerto marchavam a par.

Estaria a ser alvo de um complô odioso?
Ou era o vil acaso que assim me humilhava?
Sete vezes contei, a um ritmo cadencioso,
O sinistro ancião que se multiplicava!

Se houver quem faça pouco da minha inquietude,
Desdenhando o menor calafrio fraterno,
Atenda a que, a despeito da decrepitude,
Os sete hediondos monstros tinham ar eterno!

Pod'ria, vendo o oitavo, ser sobrevivente
Ao sósia inexorável, trocista e fatal,
De si próprio filho e pai, Fénix rep’lente?
– Mas as costas virei ao cortejo infernal.

Como um bêbado irado por ver a dobrar,
Fui p'ra casa, fechei a porta, estarrecido,
Indisposto, febril, co' a mente a delirar,
Por tudo o que é absurdo e mistério ferido!

Quis retomar o leme, a mente, mas em vão,
O esforço escarnecido pela água em motim –
Velha gabarra em dança, em dança o coração,
Sem mastros, sobre um mar monstruoso e sem fim!

Charles Baudelaire

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

Madrigal triste

I
A sensatez não tem vantagem.
Sê bonita! e sê triste! Um pranto 
Ao rosto traz melhor imagem, 
Como o rio faz à paisagem; 
Com mau tempo a flor ganha tanto.
 
Prefiro quando o bom humor
Foge de teu rosto arrasado;
E o peito se afunda em horror;
E o teu presente aceita expor
A nuvem atroz do passado.

Prefiro se o grande olho exala
Água como o sangue abrasante;
Se, a despeito da mão que embala,
Tua dor, tão pesada, estala
Como arquejo de agonizante.

Aspiro, volúpia divina!
Hino tão profundo, deleite!
O gemer que o peito domina;
Teu coração só se ilumina 
Com perlas que teu olho deite!


II
Transborda, eu sei, teu coração
De velhos amor's extirpados;
E, assim, qual forja em combustão,
Teu colo faz incubação
Do orgulho caro aos condenados;

Mas, querida, enquanto o que sonhas
Não for o reflexo do Inferno,
E em pesadelo não te ponhas
Com paixão por gládios, peçonhas,
Por ferro e pó, tudo isso eterno,

E não andes sempre inibida,
Adivinhando em tudo o horrível,
Tremendo em horas sem saída,
P'ra te poder's sentir cingida
Por um Fastio irresistível,

Não poderás, escrava alteza
Que me amas com medo brutal,
No horror de uma noite que lesa
Dizer-me, a alma em gritos acesa:
"Ó meu Rei, a ti sou igual!"

Charles Baudelaire

terça-feira, 11 de junho de 2024

A viagem

A Maxime du Camp

I
P'ra o miúdo, que por mapa e estampa se fascina,
O universo equivale a um apetite pleno.
Ah! Como o mundo é grande à luz da lamparina!
Aos olhos da memória como ele é pequeno!

Dá-se um dia a partida, a mente em combustão,
O peito amargurado a sonhar e odiar,
E lá vamos, ritmados pela ondulação,
Embalando infinito em finito de mar:

Tão contentes, uns fogem de uma pátria vil;
Outros, do horror de seu berço, e foge outro até,
Astrólogo submerso no olhar mulheril, 
Do aroma que usa Circe p'ra o ter sempre ao pé.

Embriaga-se el' (não quer que o transformem em besta)
Com espaço e com luz e com céus incendiados;
Pelo gelo que o morde, e pelo sol que o cresta,
Os vestígios dos beijos vão sendo apagados.

Mas os veros viajantes são os que só partem
Por partir; peitos leves, iguais a balões,
A quem nunca o destino pede que o descartem,
E assim repetem: "Vamos!", sem terem razões.

Os seus sonhos das nuvens tomam aparência,
Cheios, como há canhões no crânio do recruta,
De volúpias sem fim, sem qualquer permanência, 
E que, se têm nome, ninguém del' desfruta!


II
Imitamos, que horror! a valsa que saltita
De um berlinde ou pião; e, mesmo o sono vindo,
Logo a Curiosidade nos enrola, agita,
Como um Anjo inclemente que em sóis vai zurzindo.

Fortuna singular em que o alvo se desvia,
E, estando em lado algum, se encontra em qualquer ponto!
O Homem, que da esperança nunca se entedia,
Para encontrar repouso corre como um tonto!

Nossa alma procura a Icária num veleiro;
Uma voz lá na ponte troa: "Abram os olhos!"
Uma outra voz na gávea enlouquece em griteiro:
"Amor... glória... ventura!" Diabo! São escolhos!

Cada ilhéu distinguido p'lo nosso vigia
É como um Eldorado que o Destino arvora;
A Imaginação que edifica uma orgia 
Só encontra recifes ao raiar da aurora.

Ai! O tão pobre amante das terras quiméricas!
Atirámo-lo ao mar, ou fechámo-lo à chave,
Esse marujo bêbado, inventor de Américas
Cuja miragem torna o abismo mais grave?

Como um velho vadio que em lama patina, 
Sonha, de nariz no ar, com um éden radiante;
Seu olho enfeitiçado uma Cápua imagina
Onde quer que a candeia uma choça abrilhante.


III
Espantosos viajantes! Que nobres histórias
Lemos em vossos olhos como o mar profundos!
Revelai os escrínios ricos de memórias,
Essas joias que assombram co' éter de outros mundos.

Queremos viajar sem vapor e sem velas!
Fazei, para afastar o tédio que enclausura,
Passar p'ra as nossas mentes, tensas como telas,
O horizonte que tais lembranças emoldura.

Que haveis visto, dizei?


IV
"Vimos marés enchentes,
Vimos astros, e vimos também areais;
E, se houve muitos choques, bruscos acidentes,
Os nossos tédios foram, como aqui, usuais.

A glória que há no sol sobre um mar violeta,
A glória da cidade aquando do sol-pôr,
No nosso peito ateavam a vontade inquieta
De mergulhar num céu de brilho tentador.

Urbe ou vista qualquer cujo fausto seduz
Nunca chegava a ter os charmes misteriosos
Daquelas que o acaso nas nuvens produz.
E o desejo teimava em tornar-nos ansiosos!

– Ganha força o desejo co'a satisfação. 
Desejo, árvore antiga adubada em prazer,
Conforme a tua casca ganha espessidão,
Teus ramos mais de perto o sol anseiam ver!

Crescerás 'inda mais, árvore mais vivaz
Que o cipreste? - No entanto, foi com todo o zelo
Que colhemos croquis p'ra o vosso álbum voraz,
Irmãos que só no longe encontrais sempre o belo!

Fizemos saudações a ídolos com tromba;
A tronos constelados de joias radiosas; 
A paços cujo esmero de feérica arromba
Encheria os banqueiros de ânsias ruinosas;

A trajos com que a vista logo se embriaga;
A mulher's que nos dentes e unhas têm cor,
E ao ás malabarista que a serpente afaga."


V
E que mais, e que mais?


VI
"Tanto é o vosso candor!

Para não esquecermos o que é capital,
Por toda a parte vimos, sem termos buscado,
Do topo até à base da escala fatal,
O espetáculo chato do imortal pecado:

A mulher, vil escrava, orgulhosa e estúpida,
Sem nojo se adorando, amando-se sem troça;
O homem com tirania libertina e cúpida, 
Escravo de uma escrava e riacho na fossa;

O algoz que se deleita, o mártir a gemer;
O festim que tempera o sangue e o balsama;
Líder's envenenados pelo seu poder,
Chicotes que embrutecem o povo que os ama;

À nossa em tudo iguais, religiões às centenas,
E todas escalando o céu; a Santidade,
Como o frágil se espoja num leito de penas,
Buscando em prego e crina a sensualidade;

Loquaz, a Humanidade, no génio avinhada,
E tão insana agora como em tempo antigo,
Gritando a Deus, em sua agonia acirrada:
"Ó meu igual, meu senhor, como eu te maldigo!"

E o menos tolo, ousado amante da Loucura,
Encontrando refúgio no ópio sem fim
P'ra escapar do rebanho que o Destino mura!
Tal é do globo inteiro o eterno boletim."


VII
Saber amargo, aquele que se extrai da viagem!
O mundo, em ramerrão mesquinho, continuado,
Ontem, hoje, amanhã, faz-nos ver nossa imagem:
Um oásis de horror num deserto de enfado!

Há que partir? ficar? Fica, se for bastante;
Se não, parte. Se um corre, outro se há de agachar
P'ra iludir o inimigo aziago e vigilante,
O Tempo! Ai! Há quem corra sem poder parar,

Como o Judeu errante, o apóstolo igualmente,
E nem vagão nem nave lhes hão de servir
P'ra escapar a um retiário tão vil; outra gente,
Sem o berço deixar, consegue-o destruir.

Quando el' por fim pisar nossa espinha dorsal,
Poderemos gritar: "Avante!" com alento.
Como outrora era a China um destino naval,
De olhos fixos no longe e os cabelos ao vento,

Co' alegre coração de um jovem passageiro
Em pleno mar das Trevas iremos viajar.
O canto acaso ouvis, funéreo, feiticeiro,
Que incita: "Por aqui, vós que quereis provar

O Lótus perfumado! Aqui, vosso jejum
Do fruto milagroso em colheita termina;
Buscai embriaguez na doçura incomum
De uma forma de tarde que nunca declina?"

A voz é familiar, induz-se a aparição;
Por Pílades, além, seremos abraçados.
"Nada p'ra a tua Electra, acalma o coração!"
Diz quem por nós já teve os joelhos beijados.



VIII
Ó Morte, sempre ao leme, é a vez de aparelhares!
Iça a âncora, Morte! Que lugar's tediosos!
Se escuros como breu são os céus e os mares,
Os nossos corações, tu sabe-los radiosos!

Derrama sobre nós veneno que conforta!
Pois queremos, tanto arde o cérebro em tal fogo,
Mergulhar no abismo, Inferno ou Céu, que importa?
Mergulhar nessa Incógnita e achar o novo!

Charles Baudelaire