domingo, 4 de junho de 2023

O cisne

A Victor Hugo

I
Ó Andrómaca, penso em vós! Esse ribeiro,
Espelho humilde e triste onde outrora luzia
O mal da viuvez com esplendor cimeiro,
Simoente fingidor que o vosso pranto enchia,

Fecundou-me a memória com agilidade,
Quando ia a atravessar o Carrossel atual.
Paris é um lugar novo (a forma da cidade
Muda mais rápido, ai! que um coração mortal);

Já só na mente vejo esse campo de choças,
De fustes, capitéis que a confusão mal traça,
E a relva, as pedras que a água esverdeia nas poças,
O caos do bricabraque a luzir na vidraça.

Ali, já houve bichos em exposição;
Ali, um dia, vi, na hora em que sob o céu
Frio e claro o Trabalho acorda, e o furacão
Sombrio dos lixeiros provoca escarcéu,

Um cisne que pudera da jaula escapar,
E cuja alva plumagem as patas palmadas
Arrastavam no solo seco e irregular.
O bicho abrindo o bico num rio sem águas

Banhava na poeira as asas a tremer,
E dizia (alma posta no lago natal):
"Serás, raio, trovão? quando, água, hás de chover?"
Vejo 'inda esse infeliz, mito estranho e fatal,

Tal qual o homem de Ovídio, para o céu erguendo,
Esse irónico céu, todo azul agressor,
A cabeça voraz num pescoço tremendo,
Como se repreendesse o próprio Criador!


II
Muda Paris! o mesmo da melancolia
Não digo! andaimes, pedras, recentes mansões,
Velhos bairros, de tudo faço alegoria,
Mais do que as rochas pesam as recordações. 

Assim diante do Louvre uma imagem me oprime:
Penso no grande cisne, agindo a contrassenso,
Tal qual os exilados, risível, sublime,
Remoendo um desejo sem pausa, e em vós penso,

Andrómaca, de braços de esposo tombada,
Vil gado, pela mão que em Pirro é orgulhosa,
Sobre a tumba vazia em êxtase curvada;
Viúva de Heitor, ai! mas de Heleno a esposa!

Penso na esguia preta, de tísica doente,
Patinando na lama, o olho aberto exigindo
Os coqueiros perdidos da África esplendente
Logo atrás da muralha do nevoeiro infindo;

Em quem tenha perdido o que nunca, mas nunca
Reaverá! em quem do pranto é bebedor,
Mamando em sua Dor como em loba oportuna!
No órfão magro secando tal qual uma flor!

P'la floresta onde está meu pensar exilado,
Uma lembrança soa em trombeta estridente!
Penso no homem do mar numa ilha deixado,
Nos presos, nos vencidos!... em muito mais gente!


Charles Baudelaire


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