sábado, 24 de junho de 2023

O Amor e o Crânio

Velha vinheta traseira

No crânio da Humanidade
     'stá sentado o Amor,
E o profano, em tal majestade,
     Rindo sem pudor,

Sopra, co' esse humor nada sério,
     Bolhinhas para o ar,
Como se ao mais fundo do etéreo
     As pudesse dar.

Globos brilhantes, delicados,
     Rompendo após voo,
Cuspindo espíritos delgados
     Como sonhos de ouro.

O crânio vai erguendo a voz,
     Implorando assim:
- "Tal jogo risível, feroz,
     Quando terá fim?

Pois o que essa boca temida
     P'ra o ar arremessa
É o meu sangue, ó monstro homicida,
     É carne e cabeça!"

Charles Baudelaire 

sábado, 17 de junho de 2023

A uma mulher que passou

Uivava em meu redor a rua em confusão. 
Longa, esguia, enlutada com dor majestosa,
Uma mulher passou, com uma mão faustosa
Alçando, balançando a bainha, o festão;

Ágil e nobre, com a perna de uma estátua.
Eu bebia, em tensão como quem desatina,
No seu olho, céu plúmbeo onde o tufão germina,
A doçura que enleva e o prazer que mata.

Um clarão... logo a noite! - Ó tão fugaz beldade
Cujo olhar de repente me fez rebrotar,
O nosso reencontro é só na eternidade?

Algures, longe! tarde! ou nunca, se calhar!
Não sei p'ra onde fugiste, nem tu meu caminho,
Ó tu que adivinhaste meu virtual carinho!

Charles Baudelaire 

domingo, 4 de junho de 2023

O cisne

A Victor Hugo

I
Ó Andrómaca, penso em vós! Esse ribeiro,
Espelho humilde e triste onde outrora luzia
O mal da viuvez com esplendor cimeiro,
Simoente fingidor que o vosso pranto enchia,

Fecundou-me a memória com agilidade,
Quando ia a atravessar o Carrossel atual.
Paris é um lugar novo (a forma da cidade
Muda mais rápido, ai! que um coração mortal);

Já só na mente vejo esse campo de choças,
De fustes, capitéis que a confusão mal traça,
E a relva, as pedras que a água esverdeia nas poças,
O caos do bricabraque a luzir na vidraça.

Ali, já houve bichos em exposição;
Ali, um dia, vi, na hora em que sob o céu
Frio e claro o Trabalho acorda, e o furacão
Sombrio dos lixeiros provoca escarcéu,

Um cisne que pudera da jaula escapar,
E cuja alva plumagem as patas palmadas
Arrastavam no solo seco e irregular.
O bicho abrindo o bico num rio sem águas

Banhava na poeira as asas a tremer,
E dizia (alma posta no lago natal):
"Serás, raio, trovão? quando, água, hás de chover?"
Vejo 'inda esse infeliz, mito estranho e fatal,

Tal qual o homem de Ovídio, para o céu erguendo,
Esse irónico céu, todo azul agressor,
A cabeça voraz num pescoço tremendo,
Como se repreendesse o próprio Criador!


II
Muda Paris! o mesmo da melancolia
Não digo! andaimes, pedras, recentes mansões,
Velhos bairros, de tudo faço alegoria,
Mais do que as rochas pesam as recordações. 

Assim diante do Louvre uma imagem me oprime:
Penso no grande cisne, agindo a contrassenso,
Tal qual os exilados, risível, sublime,
Remoendo um desejo sem pausa, e em vós penso,

Andrómaca, de braços de esposo tombada,
Vil gado, pela mão que em Pirro é orgulhosa,
Sobre a tumba vazia em êxtase curvada;
Viúva de Heitor, ai! mas de Heleno a esposa!

Penso na esguia preta, de tísica doente,
Patinando na lama, o olho aberto exigindo
Os coqueiros perdidos da África esplendente
Logo atrás da muralha do nevoeiro infindo;

Em quem tenha perdido o que nunca, mas nunca
Reaverá! em quem do pranto é bebedor,
Mamando em sua Dor como em loba oportuna!
No órfão magro secando tal qual uma flor!

P'la floresta onde está meu pensar exilado,
Uma lembrança soa em trombeta estridente!
Penso no homem do mar numa ilha deixado,
Nos presos, nos vencidos!... em muito mais gente!


Charles Baudelaire