sábado, 25 de julho de 2020

Nota Sete (Soneto 106)

Helen Vendler defende que os versos 11 e 12 do soneto 106 de Shakespeare podem ser lidos de duas maneiras:

1 - "E, se eles não possuíssem olhos autenticamente adivinhadores, não teriam tido capacidade para cantar o teu mérito presente."

2 - "E, porque eles olharam com olhos apenas adivinhadores, não tiveram capacidade suficiente para cantar o teu mérito futuro."

Vendler opta pela primeira hipótese que, a seu ver, está mais de acordo com o sentido global do texto. No entanto, poetas como Victor Hugo e Vasco Graça Moura seguiram a segunda alternativa nas suas versões (talvez por ela ser mais evidente para quem não tem o inglês como língua materna).

Para não tomar partido num daqueles casos em que a língua exulta em ambiguidade, e supondo que tal ambiguidade dificilmente se conseguiria reproduzir em português, resolvi fazer desses dois versos uma pergunta que deixa a questão (razoavelmente) em aberto.

Sei que os ovos de Colombo não agradam a índios nem a indianos, mas, nestas viagens da tradução, prefiro uma boa polémica a tomar ocidentes por orientes.

Soneto 106

Quando noto em anais de tempo ido
A perfeição da gente lá descrita,
E o belo feito belo verso antigo
Louvando uma nobreza que é finita,
Nesses poemas nos quais se celebrava
A mão, o pé, a boca, o olho, a testa,
Sinto que a pena arcaica reclamava
A beleza que em ti é manifesta.
Foste pressagiado em tais louvores,
Do nosso tempo el's foram profecia;
Mas, se esse era um olhar de sonhadores,
Terás sido cantado com mestria?
    Hoje, já temos olhos p'ra admirar,
    E falta-nos a língua p'ra louvar.


William Shakespeare 

domingo, 19 de julho de 2020

Soneto 104

Jamais te acharei velho, amigo belo,
Olhando o teu olhar, o meu fixou
O que é beleza. Três vezes o inverno
Dos bosques de verão brio levou,
Três vezes como sempre esmaeceu
A primavera até ser louro outono,
O odor de três abris em junho ardeu,
Desde que te encontrei, e és sempre novo.
Ah!, contudo o ponteiro da beleza,
Par'cendo não rodar, muda a figura;
Meu olhar da ilusão pode ser presa,
O encanto oscila mais do que perdura:
    Se assim é, quem não for 'inda nascido
    O verão do esplendor terá perdido.


William Shakespeare 

quarta-feira, 8 de julho de 2020

Soneto 94

Parecem mesmo feitos p'ra ofender,
Mas nunca a tal poder recorrerão,
Movendo outros, são pedras por mover,
Impassíveis perante a tentação;
Se do céu com razão ganham favores,
Desposam frugalmente a natureza;
De seus rostos el's são reis e senhores,
Outros apenas servem a nobreza.
A flor para si mesma é vida e morte
Mas passa por doçura ao seu estio,
Se essa flor sucumbir a infeção torpe,
A mais torpe erva excede-a no brio:
    Um mau passo e o que é doce já definha;
    Lírio fétido é pior que erva daninha.


William Shakespeare