domingo, 27 de agosto de 2023

Elevação

Acima das florestas, acima dos mares,
De vales e montanhas, nuvens, pantanais,
Muito p'ra além do sol, dos éter's celestiais,
Para além dos confins de esferas estelares,

Meu espírito, aí te apressas a mover,
E, como quem numa onda encontra a comoção, 
Sulcas alegremente a funda imensidão
Com o mais indizível e viril prazer.

Contra os mórbidos miasmas eleva o teu passo;
Faz purificação no ar que é superior,
E bebe, como um puro e divino licor,
O fogo claro enchendo a limpidez do espaço.

Por trás dos dissabores, dos desgostos plenos
Que pesam por demais na existência brumosa,
Feliz daquel' que tem uma asa vigorosa
P'ra se lançar aos campos claros e serenos;

Aquel' cujas ideias são livres e aladas,
Cotovias rumando aos céus de uma manhã,
– Quem paira sobre a vida e entende sem afã
A linguagem das flor's e das coisas caladas!

Charles Baudelaire

sábado, 26 de agosto de 2023

O Heautontimorumenos

Sem cólera te hei de bater,
Como um talhante, sem ser mau,
Como Moisés ao seu calhau!
Da pálpebra farei verter,

P'ra dar de beber ao meu Sara,
As águas da tua tristeza.
Minha ânsia enfunada em certeza
Nadará no sal dessa cara,

Barco que se afasta no pranto,
E, inebriando o meu coração, 
Teus gemidos retumbarão
Qual tambor que do ataque é canto!

Não sou eu dissonante acorde
Numa divina sinfonia,
Graças à voraz Ironia
Que me sacode e que me morde?

'Stá na minha voz, a chorosa!
Meu sangue é o tóxico negror!
Eu sou o espelho aterrador
Onde se contempla a maldosa.

Sou roda e os membros que subjugo!
Sou tanto face como estalo!
Fico ferido e apunhalo,
Sou vítima e também verdugo!

Sou vampiro a se autonutrir,
– Um desses grandes enjeitados
Ao riso eterno condenados,
E que não podem mais sorrir!

Charles Baudelaire

sábado, 19 de agosto de 2023

"Tudo, não é: o amor não alimenta"

Tudo, não é: o amor não alimenta,
Não é sono nem teto contra a chuva;
Nem mastro para quem, numa tormenta,
Se afunda e vem à tona e logo afunda;
O amor ao pulmão 'spesso não traz ar,
Nem limpa o sangue, nem um osso cura;
E andam tantos a morte a cativar
Só porque amor em falta traz tortura!
Pode ser que, numa hora de aflição, 
Gemendo para ser da dor liberta,
Incapaz de acudir à privação,
Bem tentadora me pareça a oferta
De trocar teu amor por pão ou paz.
Pode ser. Mas não me acho assim capaz.

Edna St. Vincent Millay


terça-feira, 8 de agosto de 2023

De profundis clamavi

A Ti, única amada, peço compaixão,
Desde o abismo onde o peito caiu bem no fundo.
Com seu plúmbeo horizonte, é um tépido mundo
No qual à noite nadam blasfémia, aversão;

Em seis dos meses paira um sol já sem calor,
E a noite cobre o chão p'ra o ano completar;
É domínio mais nu do que a região polar;
– Nem animais, nem rios, nem qualquer verdor!

Ora, em nenhures há nada mais horroroso
Do que esse sol de gelo e seu frio impiedoso,
Do que essa imensa noite, Caos imemorial;

Eu invejo a fortuna de um vil animal
Que pode mergulhar num sono aparvalhado,
Tão lento é o desfazer do tempo enovelado!

Charles Baudelaire