terça-feira, 2 de agosto de 2022

Um cunquate para John Keats

Meu auge já tem fruto que o exprima,
não é laranja, tângera, ou lima,
nem toranja lunar em suspensão 
fora do quarto, nem ruim limão
(embora o ano passado, todo agrura,
me tornasse descrente da doçura)
nem o tangível sol da tangerina,
nem outra insensatez de ordem citrina
que, em Newcastle ou Leeds, com nome errado
se venda junto ao nabo enlameado,
fruto que alguém mais velho oporia
à uva onde John Keats viu Alegria, 
quando, dois anos antes de morrer,
sediou Melancolia no Prazer,
e se el' tivesse achado a fruta minha,
que não é limão, lima, ou tangerina, 
mesmo tendo-lhe sido anunciada
"a ameixa ou a maçã cristalizada"
em vez de "uva em palato requintado"
do meu fruto oriental seria aliado,
se mal tem o tamanho da cereja
p'ra haver apóstrofe uma trinca chega,
e trovaria Keats que o seu sabor
de antes da Queda retirava o teor,
p'ra logo descrever, no poema seu,
o que à segunda trinca Eva aprendeu,
e se mais tempo ele tivesse tido
para ficar como eu meio perdido,
com quarenta e dois anos igualmente 
louvaria o cunquate que o meu dente
trincou, em Micanopy, sem saber
onde o doce e o amargo nel' deter.
Muito cunquate desde então provei,
se é doce dentro ou fora 'inda não sei,
e assim, na meia-idade, em confusão, 
perguntaria a Keats a opinião:
Tem casca e polpa o fruto que te trouxe,
qual delas é amarga, qual é doce?
Onde acaba o amargor ou se inicia?
Não sei quando é que a noite se faz dia. 
Como um todo, este fruto é para mim
metáfora que à alma é mais afim 
de um quarentão com Keats que na Florida
do cunquate conclui, quando mastiga
sua pele ou pevide ou seu recheio,
que a tal deve saber um viver cheio,
picada a língua por prazer fugaz
se sorve a vida quem não é rapaz,
já longe estando os frutos do porvir.
Os dias têm uma casca escura,
o cunquate foi feito p'ra exprimir
como a morte é a pele da doçura.

Paixão, razão, história, todas vivas,
são vaivém nas papilas gustativas.
O tempo que p'ra além de Keats durei
fez-me mais velho, e ademais só sei
que é tarde p'ra morrer com juventude, 
mas se esta a todo o gozo não alude,
tenho cunquat's e dias p'ra exprimir
o Nada que amadura o Existir.
São dezasseis os anos que a mais trago,
maior safra de sonho, medo e estrago,
mas também houve a história a decorrer
entre a morte de Keats e o meu nascer -
um século de horror, cratera atenta
com todo o mal da ebulição sangrenta;
não maior que uma urna, a coisa explode,
arrebata o silêncio, toda a ode,
com ar imundo é sufocada a Flora,
ar que ninguém exp'rimentara outrora,
Náiades secas, Dríades cortadas
rastejam por paisagens devastadas,
sangue de Nesso abrasa quem da idade
do moribundo Keats só tem metade...

Não sei se vinte e seis anos eu conte
quando gelou a febre em tua fronte...
Não tenho à mão um livro onde isso veja.
Meu agridoce espírito festeja
o facto de só ter cunquat's à mão,
sobre eles não sei tua opinião, 
mas não se dá a um morto fruta ou vinho,
apenas de Prosérpina o carinho,
Fanny Brawn' já teu leito não aquece,
nem jamais a verás, quando amanhece,
colhendo uma toranja, como eu pude
ver seu bronzeado pulso, co' atitude,
tirar do caule a lua que dá brilho
p'ra quem ronda o paul do crocodilo.
Parecia acabado de inventar,
tal um julepo de sabor lunar,
esse astro que a satélites reduz
os citrinos por entre os quais reluz.

Vejo à tardinha, enquanto fecho a casa,
que astros se espremem p'la noturna casca;
liberto desta, o sol, dos raios sumo,
com dias mancha, risca, inunda o mundo,
dias, em que a luz basta p'ra chorar,
e os fármacos impedem o acordar,
em Newcastle, a filha numa cama,
parecendo que a morte nos reclama,
em Leeds, o fato escuro sendo estreado,
Natal com funeral da mãe ao lado,
dias, como este em Micanopy. Dias!

Nascendo, o sol desfaz brumas sombrias,
colho um cunquate e um ramo me rocia,
frescura que no rosto enceta o dia.
Os melaços do alvor dão aos citrinos
o brilho quieto dos vergéis dormidos.
Como Galway chovida com fartura, 
as limas quase doem de verdura,
fruta fresca de orvalho que ergueu
toda a noite o seu brilho em pleno céu.
Desponta o dia. Oh dias! Vou saudar
o cunquate e John Keats vai secundar.
Ó consolo agridoce por ainda
manter vida, abençoa ao poeta a língua!
Devoro inteiro o fruto matinal.
P'ra quarenta e dois anos, nada mal! 

Clareando o dia, os bútios logo vi
pairando na frescura do ar que sobe.
Seus guinchos tristes foram o que ouvi
quando saí de casa de manhã,
e o Fowler que, afiando o seu serrote,
soava à nossa cama em pleno afã.


Tony Harrison

Nota Dez

O poema "Um cunquate para John Keats" está metricamente organizado em pentâmetro, embora em muitos momentos a contagem dos seus pés se revele bastante dúbia. Para evitar os escolhos da procura de equivalências entre dois sistemas métricos tão diversos como o inglês e o português, optei por me manter fiel ao decassílabo ao longo de toda a tradução.

sexta-feira, 24 de junho de 2022

Nota Nove

Diria que a maior influência que tive como tradutor veio, não da poesia em si, mas da música. Muito em concreto, da música de Mozart.

Quando carrego um texto da margem de uma língua para a margem de outra, tento que o material que sobreviveu à turbulência babélica do rio não tenha perdido os níveis de clareza e simplicidade que tinha na origem.

Pode o material chegar levemente tingido, pode a sua forma ter-se tornado mais análoga do que idêntica, etc., mas aquilo que nele era claro, continua claro, e aquilo que nele era simples, continua simples.

Nota Oito

A convite do escritor catalão Joan Navarro, estou a traduzir o poema "A kumquat for John Keats", do britânico Tony Harrison, para o número de março de 2023 da revista online "sèrieAlfa". O texto só será partilhado neste blogue após a sua publicação na revista.

Constato que, para me ir mantendo fiel ao pentâmetro com que Harrison organizou o seu poema (o que equivale a dez sílabas métricas na versificação em português), vou por vezes eliminando uma ou outra informação que me parece claramente secundária (e que talvez até tenha sido acrescentada ao texto sobretudo para manter a constância do ritmo). Trata-se de uma opção polémica, numa atividade onde tudo é (ou deveria ser!) polémico.

Mas a verdade é que o tipo de traição que pratico (quando exagero, coloco uma etiqueta na tradução dizendo que se trata de uma... "versão") não me parece menor que o daquele tradutor que, para conservar toda a informação semântica do texto original, despreza o ritmo por completo. As questões formais não são o parente pobre de um texto poético.

É claro que me recuso a omitir informação essencial e que luto para que o texto de chegada seja semanticamente equivalente ao global do texto de partida. Mas, neste jogo de puro malabarismo que é a vontade de traduzir, tento equilibrar ao mesmo tempo no ar o maior número de elementos possível.

terça-feira, 1 de março de 2022

A uma Madona

Ex-voto à maneira espanhola 

Quero criar p'ra ti, Madona, minha amante,
Um altar enterrado na dor dominante,
E escavar, onde o peito é mais negro e profundo,
Ao abrigo da troça e cobiça do mundo,
Um nicho, todo em ouro e azul esmaltado,
Onde tu te erguerás como Ídolo abismado.
Co'a malha dos meus Versos, um puro metal
Polido até rimar estrelas de cristal,
Tua C'roa farei - será incomparável;
E com o meu ciúme, ó Madona findável,
Saberei preparar-te um Manto, coisa feita
Com dureza e crueldade, forrada a suspeita, 
Que guarita será p'ra encerrar teus encantos;
Não com Perlas bordado, mas com os meus Prantos!
Teu vestido será meu Desejo tremendo,
Ondulando, Desejo subindo e descendo,
Que nos picos baloiça, nos vales repousa,
Veste de um beijo só teu corpo branco e rosa. 
Com meu Respeito vou fazer belo Calçado
De cetim, por teus pés divinos humilhado,
Mas que, ao trazê-los presos num abraço mole,
Lhes guardará a forma como fiel molde. 
Se uma Lua de prata não sei fabricar
Para Degrau, por muito que possa tentar,
Vou depor a Serpente que entranhas devora
A teus pés, p'ra que pises, escarnecedora,
Ó Rainha triunfal, fértil em redenções,
Tal monstro a abarrotar de escarros e aversões.
Pensamentos verás, quais Círios, postos diante
Do altar cheio de flores da Virgem Reinante,
No teto azul brilhando a fim de o constelar,
Enquanto te contemplam com fogo no olhar;
E como nada há que te apouque ante mim,
Tudo será Incenso, Mirra, Benjoim,
E sempre para ti, cume branco e nevoso, 
Em Vapor's subirá meu Juízo tormentoso.

Por fim, p'ra completar teu papel de Maria,
E combinar o amor com toda a barbaria,
Negro gozo! dos Pecados ditos mortais,
Com remorsos de algoz, farei sete Punhais
Bem afiados, e, como um artista iracundo,
Fazendo pontaria ao teu amor profundo,
Todos hei de cravar em teu Peito ofegante,
Em teu Peito gritante, em teu Peito jorrante!


Charles Baudelaire


domingo, 13 de fevereiro de 2022

O convite à viagem

Minha irmã, criança,
Pensa na bonança
De irmos viver para ali!
Amar sem correr,
Amar e morrer
No país igual a ti!
Os sóis alagados
Desses céus toldados
Têm p'ra mim os encantos
Tão indefinidos
Dos olhos fingidos 
Que reluzem nos teus prantos. 

Lá, tudo é calma e rigor,
Prazer, beleza, esplendor.

Só móveis polidos
P'los tempos volvidos
Nosso quarto alegrariam;
As mais raras flores
Unindo os odores
Aos que no âmbar se anunciam,
Tetos carregados,
Espelhos cavados,
O requinte oriental,
Falaria tudo
Ao 'spírito mudo
Na doce língua natal.

Lá, tudo é calma e rigor,
Prazer, beleza, esplendor.

Nesses canais, nota
Que dorme uma frota
Cujo humor é vagabundo;
P'ra satisfazer
Teu menor querer
Ela vem do fim do mundo.
- Os sóis vesperais
Vestem os canais,
Os campos, o povoamento,
Com oiro e zircão;
Num quente clarão
Fica o mundo sonolento. 

Lá, tudo é calma e rigor, 
Prazer, beleza, esplendor.


Charles Baudelaire