domingo, 9 de maio de 2021

Bênção

Assim que, por decreto da força suprema,
Aparece o Poeta no mundo entediado,
Sua mãe assustada e por demais blasfema,
Contra o Deus que a lamenta ergue um punho cerrado:

– "Ah!, tivesse eu parido um ninho de serpentes,
Em vez de dar meu leite a toda esta irrisão!
Maldita seja a noite de amor's transientes 
Em que foi concebida a minha expiação!

Se entre as mulheres todas me foste buscar
P'ra trazer a aversão ao meu triste marido,
E se nem sequer posso nas chamas lançar,
Como carta de amor, o monstro diminuído,

O rancor que me impinges farei recair
No instrumento votado às Tuas maldições,
E essa árvore ruim tanto a hei de ferir
Que jamais crescerão seus fétidos botões!"

Engole então a baba que o rancor soltara,
E, não sabendo ler os desígnios eternos,
Na Geena profunda ela mesma prepara
As piras consagradas aos crimes maternos.

Mas o Miúdo enjeitado o próprio sol consome
Sob a guarda invisível do seu Querubim,
E em tudo o que bebe e em tudo o que come
Ele encontra a ambrosia e o néctar carmim.

Conversa com a nuvem, brinca com a aragem,
Embriaga-se, cantando, com a sacra via;
E o Espírito que o segue na sua romagem
Chora ao vê-lo, qual ave, cheio de alegria.

Os seres que ele estima julgam-no nojento,
E, colhendo coragem na sua bondade,
Tentam ver quem consegue arrancar-lhe um lamento
Para assim se adestrarem na ferocidade.

Em todo o vinho e pão que lhe hão de ir ter à boca
Vão misturando cinza com escarros vis;
Hipócritas, rejeitam tudo o que ele toca
E penam se o seu trilho com o del' condiz.

Nas praças da cidade a sua mulher brama:
"Já que ele mitifica a minha formosura,
Levarei o viver que um ídolo reclama,
Com direito ao retoque da antiga pintura;

E hei de me empanturrar de incenso, mirra, nardo,
E de genuflexões, de carnes, de licores,
Zombando enquanto roubo ao coração do bardo
O que é devido a Deus em forma de louvores!

E, quando de ímpias farsas me achar enjoada,
Minha mão fraca e forte sobre el' pousarei;
E com unhas de harpia hei de abrir uma estrada
Com que ao seu coração por certo chegarei.

Como um pássaro jovem que treme e palpita,
Esse órgão tirarei do vermelho carnal,
E, como quem sacia a besta favorita,
Vou atirar-lho ao chão com desprezo total!"

Para o Céu, onde avista o seu trono imponente,
O Poeta sereno ergue as mãos piedosas
E os profundos clarões de tão lúcida mente
Ocultam-lhe a aparência das turbas furiosas:

- "Bendito sejais, Deus, que entregais a dolência
Como cura divina p'ra os nossos desvios,
Como sendo a mais pura, a mais perfeita essência
Que prepara os robustos p'ra os júbilos pios!

Há de um dia o Poeta por certo ir subindo
Às filas venturosas das santas Legiões,
E haveis de o convidar para o festejo infindo
Dos Tronos, das Virtudes, das Dominações.

Sei bem quanto é preciso que a vida me doa
P'ra da terra e do inferno exceder o estatuto,
E que para entrançar tal mística coroa
A todo o mundo e tempo há que pedir tributo.

Mas as joias perdidas da Palmira antiga,
As pérolas do mar, os metais por saber,
Engastados por Vós, nada há que consiga
Compor um diadema tão claro a esplender;

Só pura luz será sua matéria-prima,
Vinda do santo lar dos primórdios radiosos,
Da qual olhos mortais, no fulgor que os anima,
Não são mais do que espelhos turvos e chorosos!"


Charles Baudelaire 

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